No último dia 28 de dezembro, o programa Cidades e Soluções, da GloboNews, foi ao ar com uma dupla entrevista com os prefeitos reeleitos do Rio de Janeiro e de São Paulo. As entrevistas conduzidas por André Trigueiro, experiente jornalista da área ambiental, têm mais interesse pelo que deixou de ser respondido, e perguntado, do que por aquilo que foi propriamente dito. E se o jornalista tivesse tido um ponto no seu ouvido soprando novas questões e indagações sobre o que pareceu ser uma ocultação dos reais problemas? Façamos esse exercício.
As perguntas apresentadas aos prefeitos foram praticamente as mesmas, mas o estilo de cada um, e as diferentes capacidades de sair pela tangente, tornam as entrevistas bastante diversas. Eduardo Paes, informal e falante, tem a manha carioca da sedução e a capacidade de fazer parecer que tudo o que produz é o mais correto. Já Nunes é mais contido, apesar de ter aceitado encenar a sua entrada na sala para o encontro com o entrevistador. O prefeito paulista buscou se calcar em dados, tentando passar despercebida a sua aliança com a extrema-direita, grande inimiga das ações em prol do meio ambiente. Revendo o vídeo, vamos às perguntas.
A primeira pergunta de André Trigueiro é sobre a crise climática e como proteger a população de eventos climáticos extremos. Eduardo Paes reconhece a existência da crise e as emergências que provoca. Na sua resposta, recorre à parceria da Prefeitura com a Nasa e à compra de um novo radar, para ter mais previsibilidade quando uma emergência ocorrer. Mas, o prefeito, que sequer tem um órgão específico voltado para o clima, não se coloca diante de um horizonte mais alargado.
Segura essa aí, André, e lembre ao prefeito que, sendo uma cidade costeira, no futuro o Rio de Janeiro deverá ter áreas inundadas, com necessidade de realocação de populações. As soluções propostas pelo prefeito são aquelas já conhecidas, como a contenção de encostas e a realocação pontual de moradores, além da construção de piscinões para conter o excesso de vazão dos rios. A construção de um dique holandês junto ao Jardim Maravilha, uma comunidade de Guaratiba, também é citada. No entanto, André, sendo enorme a dimensão do problema a ser enfrentado por cidades sujeitas ao avanço do mar, sem um planejamento prévio, no futuro, o desastre será certo.
Comentando sobre as milhares de pessoas vivendo em áreas de risco já reconhecidas, Eduardo Paes recorre à necessidade de que o governo federal reative seus programas de habitação popular, como o Minha Casa, Minha Vida. André, por favor, não deixe passar essa. É curioso não ocorrer ao prefeito que políticas habitacionais deveriam ser políticas locais, cabendo ao governo federal a correção de distorções. No entanto, ele, e boa parte dos prefeitos brasileiros, não investem na produção de habitação social, sabendo que a população mais pobre dará seu jeito. Jeito esse que, lá na frente, exigirá obras caríssimas de contenção de encostas, e poderá acarretar vidas perdidas.
Sobre o mesmo tema da crise climática, Nunes apresenta um plano, o Planclima, com as diretrizes da Prefeitura para o problema. O prefeito paulista cita também as ações que visam substituir a frota de ônibus urbanos da cidade, trocando os movidos a diesel por ônibus elétricos. O poder econômico de São Paulo se manifesta na cifra anunciada de R$ 6 bilhões para fazer essa substituição. E nessa, André, a prefeitura paulista está à frente da carioca, que ainda não deu início à eletrificação da frota. Paes aposta na futura renovação do contrato de concessão das linhas urbanas da cidade, com a substituição dos ônibus a diesel após o fim das suas vidas úteis, ou seja, ainda um bom tempo de poluição e fortes emissões de CO² à frente.
Já sobre a quantia estimada de 500 mil pessoas morando em áreas de risco em São Paulo, o prefeito Nunes, que afirma ter o maior programa habitacional da história da cidade, diz que irá zerar esse número. Está vendo André, como, independentemente da análise da qualidade das ações voltadas para habitação social em São Paulo, é interessante o contraste entre um prefeito que executa o seu próprio programa e o que acredita que a responsabilidade é do governo federal?
Perguntado sobre o déficit de arborização urbana nas zonas Norte e Oeste da cidade, o prefeito Paes, que está iniciando o seu quarto mandato, reconhece o problema, e cita os parques já criados e os projetos para a criação de novos parques. Parques são ótimos, mas são soluções pontuais. Tentando explicar a falta de árvores, nas áreas menos aquinhoadas da cidade, Paes recorre a explicações confusas, como a adoção no passado de espécies equivocadas, falando das amendoeiras. Ah não, André, não deixe passar essa enrolação! Lembre ao prefeito que nem amendoeiras os bairros mais áridos da cidade têm. Confronta ele com a perda de capacidade operacional da Fundação Parques e Jardins e com a não implementação do Plano Diretor de Arborização Urbana, concluído em 2015!
André então pergunta sobre mobilidade sustentável nas cidades. O prefeito Nunes informa que já existem 886 km de ciclovias e ciclofaixas em São Paulo, com previsão de chegar a mil km. Segundo o prefeito, todas as novas obras viárias da cidade contemplam a construção de ciclovias. Ele promete cuidar da sua manutenção. O prefeito promete também implantar um sistema de transporte hidroviário utilizando as represas Billings e Guarapiranga e os rios Tietê e Pinheiros. André, parece conhecer pouco essas realidades e apenas sorri satisfeito.
Sobre o mesmo assunto, Paes admite que nos últimos quatro anos investiu pouco em ciclovias, já que havia outras emergências deixadas pela desastrada administração Crivella. A cidade, que já teve a maior malha cicloviária do país, conta atualmente com 490 km de estrutura cicloviária. Para os próximos quatro anos, Paes promete o lançamento do Plano Cicloviário, pronto há dois anos e ainda não tornado público. Dois anos na gaveta! André, você conhece bem a realidade das ciclovias cariocas, tão esburacadas quanto nossas vias para automóveis. Ao não replicar, está sendo condescendente…
Sobre resíduos sólidos, o prefeito Nunes afirma que a cidade de São Paulo acaba de atingir a meta de 100% de coleta do lixo reciclado. No entanto, a porcentagem desse material que é reciclado está abaixo de 8%, uma enorme contradição na maior metrópole brasileira. Ao prefeito carioca, André Trigueiro lembra que a Comlurb tem o quarto maior orçamento do município, o que deveria significar uma melhor performance. Paes afirma que, para os próximos quatro anos, há maiores possibilidades de avanços na compostagem dos resíduos orgânicos do que na reciclagem. O prefeito admite que a porcentagem real de resíduos sólidos reciclados está abaixo dos 10% oficialmente divulgados. A própria coleta de resíduos ainda não é completa na cidade, e o prefeito afirma que isto seria uma condição para dar mais ênfase à reciclagem. André, conteste isso aí, por favor. É possível completar a coleta, avançando na reciclagem!
A propósito do Prefeito Paes ter apartado o licenciamento ambiental da Secretaria de Meio Ambiente, levando-o para a área de desenvolvimento econômico, Trigueiro pergunta a Eduardo Paes se o licenciamento ambiental incomoda na hora de pensar o desenvolvimento da cidade, e se está funcionando. Peraí André, a pergunta colocada assim está muito ingênua. Você se lembra que uma vez questionou, ao vivo, a Secretária Municipal de Meio Ambiente sobre uma obra na Praia do Pepê, na Barra da Tijuca, voltada para a guarda de pranchas de windsurf. A obra estava produzindo grandes impactos ambientais, e a Secretária, muito sem graça, lhe informou que não tinha ingerência sobre o licenciamento ambiental.
E não é só isso, as gigantescas transferências de potenciais construtivos entre bairros estão produzindo verticalizações e adensamentos problemáticos nos bairros mais visados pelas construtoras. Então, André, você sabe que não funciona, que a fórmula do Prefeito Paes entrega à raposa o cuidado das galinhas, no caso o nosso meio ambiente. Melhora a pergunta André!
Paes recorre à já gasta acusação de corporativismo, pois, segundo ele, os mesmos técnicos seguem fazendo as análises dos processos de licenciamento, apenas com uma chefia diferente. Ora, uma chefia ligada ao desenvolvimento econômico tem uma grande capacidade de pressionar para que questões ambientais sejam relevadas em prol desse desenvolvimento. Um desenvolvimento bem questionável, aliás. André, da próxima vez, esteja mais afiado, porque entrevistar essas raposas da política é tarefa muito difícil. Eles cursaram a escola da velha política, onde a verdade é meio velada, e absurdos, com jeito, podem parecer boas ações. Valeu a intenção, André. Obrigado.