Com a provável, e bastante discutível, construção do estádio do Flamengo no terreno do antigo Gasômetro, é preciso que se faça o inventário dos bens que, certamente, se perderão com essa obra. São edificações industriais remanescentes do período em que ali funcionou a fabricação e o armazenamento de gás para a cidade do Rio de Janeiro. Essa memória dos primórdios da indústria tem sido preservada em diversos países, já sendo considerada como parte do seu Patrimônio Cultural.
O fornecimento de gás na cidade remonta ainda ao Império, quando o Barão de Mauá criou a Companhia de Iluminação a Gás. Três anos após a assinatura do contrato de exclusividade para o fornecimento desse serviço, ocorrida em 1851, o gás obtido pela queima de carvão já chegava a 3.027 lampiões de rua, anteriormente iluminados pela queima de óleo, 3.200 residências e três teatros.
A empresa, que se localizava na Avenida Presidente Vargas, em edifício ainda parcialmente existente, foi depois vendida a uma companhia inglesa e, em 1876, a concessão do serviço passou para a empresa belga Société Anonyme du Gaz – SAG. Foi essa empresa que, em 1911, construiu as instalações do Gasômetro em São Cristóvão. É importante lembrar que o terreno onde a companhia se instalou é fruto de aterro para a construção do Porto do Rio, ocorrida no mesmo período das obras do prefeito Pereira Passos, já que ali havia o Saco de São Diogo.
Inicialmente o carvão, importado da Inglaterra, chegava ao Gasômetro por ferrovia elevada sobre o Canal do Mangue, que o conectava ao porto. Depois, passou a chegar em chatas pelo canal, sendo transferido para a área de armazenamento por estruturas metálicas que atravessavam a avenida Francisco Bicalho. Por ali também eram escoados os resíduos industriais. Em 1967 o carvão foi substituído pela nafta e, em 1982, teve início o uso do gás natural vindo da bacia de Campos. Todos esses anos de armazenamento e manipulação desses produtos tão poluentes produziram a grave contaminação do solo do terreno onde se deseja construir o estádio.
As maiores edificações do Gasômetro eram os três tanques circulares de armazenamento de gás e as estruturas metálicas que os sustentavam. Em 2000, em função da aproximação do momento de desativação do Gasômetro, a Prefeitura do Rio propôs o local como objeto do concurso de projetos organizado pela cidade de Santiago de Compostela. Os projetos de reutilização dos equipamentos lá existentes propunham a preservação dos tanques, dando-lhes novas funções, como cinema, biblioteca, shopping e habitação.
Apesar de serem marcos na paisagem local, os tanques de gás começaram a ser desmontados em 2006, fruto da miopia do governo Rosinha Garotinho, que desejava ver o terreno livre para a venda à iniciativa privada. Um deles ainda permaneceu por mais tempo, mas também acabou desmontado. Um grande equívoco, pois há diversos exemplos pelo mundo de reaproveitamento dessas estruturas para outros usos. Mesmo assim, ainda restam no terreno do Gasômetro elementos interessantes que deveriam ser avaliados antes de se passar o trator por cima de tudo.
Sem uma visita de técnicos da área do Patrimônio ao local, é difícil ter uma certeza sobre quantos e quais são os imóveis que mereceriam ser preservados no terreno. Há ainda pelo menos cinco prédios em tijolinhos aparentes, uma tipologia característica de edificações industriais europeias do início do século XX. Alguns são de dois pavimentos e outros com um único pavimento, no formato de galpões. O tratamento das fachadas tem influência do neoclassicismo, com pilastras, frisos, cornijas com dentículos e platibandas. Há também fachadas encimadas por frontões, sendo alguns deles em escadinhas.
No centro do terreno do antigo Gasômetro há uma chaminé em tijolos aparentes, outra marca das antigas instalações industriais da cidade que se destacavam no horizonte. Ali próximo, no que foi a antiga fábrica da Brahma no Catumbi, também havia uma outra chaminé, implodida juntamente com a fábrica pelo próprio prefeito Paes em 2011. Em poucos minutos, 123 anos de história foram ao chão. Outra dessas chaminés permanece no início da avenida Brasil, onde antes existiu a Fábrica de Sabão Português.
Outro elemento vertical digno de nota é uma curiosa torre metálica, semelhante a um castelo de água, que poderia figurar em cenários de filmes retrofuturistas. E há o muro que circunda o terreno do antigo Gasômetro. Em tijolos aparentes, ele é muito bem construído e bem alicerçado. Como elemento contínuo que separa o espaço exterior do interior a sua permanência integral não seria benéfica a qualquer novo empreendimento na área. Mas, como vem marcando a paisagem local por tanto tempo, seria interessante a manutenção de uma parte dele.
Por fim, não deve ser esquecido o antigo Hospital Frei Antônio, conhecido como Lazareto. Ele se encontra bem junto ao terreno do antigo Gasômetro, numa posição ligeiramente elevada, podendo ser visto de vários pontos de observação. Ele não será demolido, já que foi tombado em 1985 pelo Município do Rio de Janeiro. Mas o grande volume e altura do estádio que o Flamengo deseja construir certamente irão obstruir a visão do hospital. Como o IRPH pretende conciliar o estádio com esse bem tombado é uma incógnita.
No Rio de Janeiro se costuma lamentar pelas perdas de bens do passado. A cidade já perdeu muito de seu maravilhoso Patrimônio. Mas é importante ter a consciência de que continua a haver projetos de renovação urbana pouco cuidadosos. Além disso, o menosprezo com o passado ainda está presente entre administradores públicos e políticos. É triste e revoltante, mas segue ocorrendo a perda do Patrimônio carioca e o atual prefeito tem sido um importante agente desse processo.