Cidades fenecem, mas nem sempre desaparecem da memória coletiva da humanidade. Babilônia, Tróia, Persépolis e outras, foram saqueadas, destruídas, mas sobrevivem nos relatos históricos. Retornamos a elas nos livros, nas pesquisas arqueológicas, e na imaginação. A cidade de Lídice foi arrasada pelos nazistas. Seu nome deveria ser esquecido. Mas outras Lídices surgiram no mundo para que ela não morresse em nossos corações.
A Lídice original era uma pequena cidade na atual República Tcheca. Seus moradores eram suspeitos de ter abrigado duas pessoas que teriam participado da Operação Anthropoid. Essa operação resultou no atentado em Praga, que matou o governador do Protetorado da Bohemia-Moravia, partidário de Hitler. A vingança dos nazistas ocorreu em 10 de junho de 1942, quando os 184 homens da cidade, com idades acima de 16 anos, e algumas mulheres, foram fuzilados. As demais mulheres foram enviadas para o campo de concentração de Ravensbrück. Quanto às crianças, foram divididas em dois grupos. As mais próximas do tipo ariano foram encaminhadas para casas de famílias alemãs, para serem reeducadas. E as demais foram igualmente enviadas a um campo de concentração e a câmaras de gás.
Não satisfeitos, os nazistas fizeram a cidade desaparecer do mapa. Inicialmente, ela foi incendiada. Depois, por vários meses, realizaram um trabalho sistemático de arrasamento, dinamitando-a, nivelando o terreno, aterrando o lago, deslocando o curso da estrada e do rio, e esvaziando o cemitério de seus mortos, até que não mais existisse qualquer traço do que um dia havia sido Lídice.
Mas uma campanha levou diversos países a renomear como Lídice cidades de seus territórios. E pais deram esse belo nome às suas filhas. Há cidades de nome Lídice no México, nos Estados Unidos e no Brasil. Esta última é a antiga localidade de Santo António do Capivari, atual distrito de Rio Claro, cidade próxima a Angra dos Reis. Ela foi escolhida para ser a nossa homenagem à cidade vitimada pelos nazistas. Na Lídice fluminense, todos os anos, em junho, é celebrada a Festa da Paz, em memória à Lídice tcheca. Essa é uma história que dignifica os países que participaram da iniciativa de não deixar que o mal triunfasse por completo.
Hoje o mundo assiste à destruição de Mariupol pela invasão russa. Tal como fizeram em Aleppo, na Síria, a cidade vem sendo arrasada por bombardeios vindos de longe. Não é a destruição provocada por combates de exércitos inimigos, frente à frente. É o envio acovardado de mísseis que partem de navios ou lançadores situados a dezenas ou centenas de quilômetros de distância, de onde não se escuta o estrondo, nem se vê os desabamentos, os incêndios e as mortes provocadas.
É difícil ver uma cidade desaparecer, ainda mais sob intensos bombardeios, que arrancam terços dos edifícios, incendeiam o que resta dos mesmos, calcinam as árvores e o chão. Há uma guerra sentida pelos corpos dos habitantes, que são perfurados por balas, aleijados ou estuprados. Há uma guerra calando fundo no inconsciente dos moradores. Causa medo, angústia e irritação. Destrói a inocência das crianças. Provoca saudade e incompreensão nos que fugiram, e deixa um olhar vazio e abatido em quem ainda permanece, impossibilitado de escapar.
Mas há uma guerra apagando uma cidade. Onde havia brinquedos, agora há minas terrestres. O prédio onde se realizavam os casamentos, o posto de saúde, o escritório ou a fábrica onde se trabalhava já não existem. Em qual avenida se realizavam as festas e os protestos? Em que parque se passava as tardes de domingo? Onde os trabalhadores do porto tomavam vodca? Teria Mariupol uma zona de prostituição? Teria uma universidade? Um parque de diversões? Tudo agora é uma massa cinza de destroços e desolação. Apenas cães e algumas pessoas desorientadas ainda vagam por entre os destroços da cidade, ao som dos estrondos de bombas.
Putin parece decidido a erradicar Mariupol do mapa, torná-la um território contaminado ligando as áreas invadidas da Crimeia e Donbass. O mundo assiste aflito, indignado, mas contido pelo poder de dissuasão das ogivas nucleares. A retirada apressada dos russos das cidades vizinhas a Kiev revelou massacres e torpezas, que não se imaginava poderem ainda ocorrer em solo europeu depois de tanto sofrimento das duas guerras mundiais. Nos damos conta de como a existência de superpotências é algo danoso para a paz. Elas agem sem limites, especialmente quando têm dirigentes ditatoriais, capazes de manipular a opinião dos seus cidadãos.
Aparentemente, Mariupol está condenada ao arrasamento. Resta saber se também estará condenada ao esquecimento.
Este é um artigo de Opinião e não reflete, necessariamente, a opinião do DIÁRIO DO RIO.
É a história do meu nome Lídice…