Algumas semanas atrás, perdemos o arquiteto Ítalo Campofiorito, mestre de toda uma geração que se encantou com a proteção e a gestão do Patrimônio Cultural brasileiro. Foi um homem cordial, amante da conversa, que soube escutar e valorizar os jovens que o procuravam. Ítalo atuou nas três esferas administrativas: nacional, onde foi membro do Conselho Consultivo do IPHAN; estadual, tendo sido diretor do Inepac e membro do Conselho Estadual de Tombamento; e municipal, quando foi membro do Conselho Municipal de Proteção ao Patrimônio Cultural da Cidade do Rio de Janeiro e membro do Conselho Municipal de Tombamento de Niterói. Ítalo integrou também a Câmara Técnica do Corredor Cultural, órgão responsável pela definição das políticas desse projeto tão importante para nossa cidade.
O seu texto “Muda o Mundo do Patrimônio, notas para um balanço crítico[1]” teve um enorme impacto na formação de todos os que buscavam um caminho para além daquele traçado pelos pioneiros que construíram o antigo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – SPHAN. Ali, vemos como a proteção do patrimônio brasileiro é o resultado de um longo processo, com a contribuição de distintos atores. A começar pelas palestras ministradas no IHGB, nos idos de 1914, por Araújo Viana, Ricardo Severo e José Mariano. E também a viagem de Lúcio Costa a Minas no fim da década de 1920, o estudo de Mário de Andrade sobre o Patrimônio brasileiro e a decisiva atuação do Ministro Gustavo Capanema e de Rodrigo Melo Franco na criação, em 1937, do atual IPHAN. Nomes tão distantes da nulidade que o governo atual quer impor ao Instituto. Buscava-se então identificar o que seria esse Patrimônio no Brasil e o que preservar, no interesse da construção de uma moderna identidade nacional.
[1] CAMPOFIORITO, Ítalo. “Muda o Mundo do Patrimônio, notas para um balanço crítico”. In: RIO DE JANEIRO, Governo do Estado. Revista do Brasil, Ano 2 nº 4/85. Rio de Janeiro, 1985, PP. 32-43.
Naquela fase inicial foi dado maior relevo a obras excepcionais da arquitetura, contempladas com a inscrição no Livro das Belas Artes. No entanto, ao longo dos anos, por força da experiência acumulada e do diálogo com os questionamentos que se davam em outros países, ocorreu uma ampliação conceitual sobre o que deveria ser incluído na noção de Patrimônio. Foram abandonadas visões mais preconceituosas com relação ao ecletismo, se valorizou a arquitetura art déco, e já a boa arquitetura moderna se tornou Patrimônio. Hoje vivenciamos a inclusão também da arquitetura e do maquinário industrial no conceito de Patrimônio, assim como dos bens imateriais.
Uma alteração significativa foi a evolução em direção à noção de Patrimônio Cultural, que permitiu a incorporação de bens que não se enquadrariam nos tradicionais livros das Belas Artes. No Estado do Rio de Janeiro, na década de 1980, estando Ítalo à frente do Inepac, foram realizados tombamentos paradigmáticos, que marcaram essa ampliação conceitual, como os bondes de Santa Teresa e a Pedra do Sal. Foram tombados também a Casa da Flor, em São Pedro da Aldeia, e a obra do Bispo do Rosário.
A sociedade se move nessa direção e cria suas próprias formas de valorização do Patrimônio. O Museu da Maré, por exemplo, é uma iniciativa local que promove a preservação de uma casa sobre palafitas e dos utensílios da moradia e do trabalho que anteriormente prevaleciam naquele bairro. Ali, a identidade local é valorizada, independente de outra que se queira impor. Reconhecer essas novas realidades e estabelecer o diálogo entre os diferentes polos da sociedade é um desafio que precisa ser enfrentado. Sem esse diálogo, o Patrimônio oficialmente reconhecido corre o risco de se tornar desprovido de sentido para amplas parcelas da sociedade.
A proteção ao Patrimônio Cultural é uma necessidade construída ao longo do tempo, e certamente serve de medida de civilidade. Há que se cuidar para que não se transforme em uma imposição burocrática, sem debate e participação da sociedade. É necessário alimentar a mobilização da sociedade em defesa do seu Patrimônio, como a que se deu contra a demolição do Palácio Monroe ou a destemida ação de jovens que, subindo na fachada da Fundição Progresso, sustaram as picaretas que demoliam o edifício. O valor da memória é, hoje, mais difundido e há na sociedade uma demanda pela preservação daquilo que ela valoriza. O mundo do Patrimônio precisa ir ao encontro dessa demanda.
A proteção e valorização do Patrimônio tem agora mais uma importante razão de ser: o fato de contribuir para o desenvolvimento sustentável. Enzo Scandurra[2] define que as cidades do desenvolvimento sustentável seriam aquelas que destinassem uma cota relevante de matéria e energia à sua manutenção e à sua organização interna e não ao seu crescimento. Assemelhar-se iam a um ecossistema maduro, como uma floresta, ao contrário de um bosque. Nessas cidades, seriam praticadas a reutilização, a recuperação, a renovação urbana, e a transformação no sentido tecnológico e qualitativo. Seriam cidades em que a qualidade se contraporia à quantidade. Devemos caminhar para uma maior valorização da arquitetura preexistente e a atribuição de novos usos à mesma, como a conversão em habitação popular, por exemplo.
[2] SCANDURRA, Enzo. L’ambiente dell’uomo, Verso il progetto della città sostenibile. Milano: Estalibri, 1995, p. 198.
Até aqui já foi longo o caminho percorrido. Ampliou-se e diversificou-se o acervo de bens protegidos. A experiência técnica acumulada é, em si, um importante patrimônio e os profissionais da área são de enorme dedicação. As áreas protegidas de nossas cidades tornaram-se pontos irradiadores de identidade. O capital cultural já é visto como capaz de agregar valor econômico. Não só a produção cultural mais erudita é vista como Patrimônio, mas também diversas outras manifestações e realizações populares. Patrimônio e meio ambiente passaram a ser vistos de forma relacionada. As investidas de políticos mal intencionados e da especulação imobiliária trazem novos riscos e desafios, mas há razões para um moderado otimismo.
O Rio de Janeiro teve sua paisagem cultural, a combinação única de ambiente edificado e natureza, reconhecida como Patrimônio Cultural da Humanidade. Além de sua arquitetura que contem exemplares que perpassam os períodos da colônia, do império, da velha república e da modernidade, a cidade é também uma usina de criação de expressões culturais. Sabendo valorizar esse Patrimônio Cultural, teremos um belo ponto de partida para a construção do nosso desenvolvimento sustentável.
[…] artigo, originalmente publicado no Diário do Rio , o arquiteto e urbanista Roberto Anderson Magalhães analisa a questão do patrimônio cultural, […]
Parabéns ao Diário do Rio por abordar assunto tão importante. Parabéns ao Roberto Anderson pelo excelente artigo.
Concordo com os comentários acima. O espaço urbano do Rio, com sua arquitetura, monumentos e sítios, é um livro aberto de história. Infelizmente, as escolas públicas não têm condições matérias e humanas para “ler” esse livro vivo de significado para o desenvolvimento do país.
Como só se cuida daquilo que se conhece, a população não valoriza nem exige a manutenção desse acervo. Lamentável!
A maneira como o poder público trata os Patrimônios Arquitetônicos, Históricos e Culturais neste País é criminosa. Exemplo disso foi o Museu Nacional e Palácio de São Cristóvão ter sido consumido em chamas em setembro de 2018 na Quinta da Boa Vista. Exemplo é vermos hoje o edifício lindo de arquitetura vitoriana da Estação Leopoldina estar completamente abandonado enquanto poderia virar um centro cultural e Museu do Trem e ser aberto para o carioca e turista. Exemplo é quando vemos a Central do Brasil abandonada e não um terminal moderno e de estética urbana como ocorre nos Países desenvolvidos. Exemplo é ver a Casa da Marquesa de Santos que também é um Museu fechada e abandonada em São Cristóvão. Brasileiro não se preocupa com memória, com história, com proteção da Arquitetura de outras gerações, com preservação do Patrimônio. É necessário um profundo despertar sobre esse assunto em todas as esferas. Fiz intercâmbio no Canadá em Toronto em 2018 e lá é impressionante como o povo cuida e celebra sua história, seus edifícios históricos, etc, eles fazem desses lugares pertencimento e orgulho de saber que ali foi assinado uma lei em 1800, que nasceu uma biografia importante, etc. Aqui no Brasil não há defensores da preservação do Patrimônio, o IPHAN infelizmente quase não faz nada, não se discute isso no dia a dia. A pauta de todo cidadão de bem é saúde, educação e combate à corrupção; agora falar de preservação dos nossos locais históricos e Patrimônios e estética urbana, quase ninguém fala. O incêndio do Museu Nacional em 2018 é uma representação de como o Patrimônio, a educação, a preservação, etc, é tratada neste País, é nula, não temos defensores dos Patrimônios. Temos um grande desafio pela frente. Sou a favor de que todo prédio que tem importância histórica, política, cultural, etc, seja reformada de 5 em 5 anos e devolvida à população carioca e ao turista como centro cultural e museu que conte sobre a história do próprio local. O IPHAN poderia pressionar esse projeto como força de lei