Roberto Anderson: Novos tempos

Roberto Anderson fala sobre mudanças no funcionalismo público

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A repartição estava instalada num imóvel, cuja construção havia se dado algumas décadas atrás. Com dois andares, um dia teria sido a casa de uma família mais abastada. A pintura andava meio gasta e o jardim havia sido cimentado. Os salões foram subdivididos em espaços menores e o maior cômodo do segundo andar, aquele que deve ter sido o quarto do casal, foi reservado ao senhor diretor.

O funcionário mais respeitado da repartição, homem de meia idade, no passado já esteve instalado nos cubículos menores, junto com auxiliares e pessoas sem função definida. Com o passar dos anos, seja através de pequenas conquistas, seja por astúcia em momentos de mudança de chefia, passou a ocupar uma saleta mais apresentável. O piso de tacos com desenhos de claro e escuro, a janela sobre a rua, o ventilador de pé, os arquivos e as luminárias formavam um conjunto, que emprestava ao funcionário uma certa distinção e, claro, lhe dava satisfação.

O trabalho já não tinha mistérios, ele conhecia todos os procedimentos. Mas também não trazia surpresas. Na verdade, a rotina havia se imposto. O salário havia perdido boa parte do seu poder de compra. Quando pressionado pelos representantes do funcionalismo, o governador pedia paciência, lembrava que a situação econômica do Estado era precária, e acabava dando um cala-a-boca qualquer. Mas, a verdade é que o salário já não permitia alguns pequenos luxos, como em anos atrás.

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Salário depreciado e problemas em casa lhe provocavam uma certa atitude depressiva. Como consolo, restava o prestígio angariado em anos de repartição. Ninguém dominava o assunto tanto quanto ele. E ninguém era mais paciente e disponível para explicar aos mais novos os meandros para se solucionar problemas, que pareciam insolúveis. Esse prestígio estava refletido na sua sala, intocável. Ninguém ousaria questionar o seu direito àquele espaço, que se não era o mais nobre, era suficiente para lhe conferir dignidade e respeito.

O pessoal da limpeza já sabia: nada podia ser retirado do lugar, nenhuma pilha de papel podia ser misturada a outra, nenhum retrato dos familiares podia ter seu ângulo mudado. Para eles, ele era o doutor. Seu cafezinho era servido várias vezes ao dia, sempre com o açúcar na medida. Os quadros na parede não eram da repartição, tinham sido trazidos de casa, assim como a cadeira giratória, já que as cadeiras fornecidas pelo serviço eram de má qualidade, e já meio gastas.

Todo o conjunto refletia a palavra mágica: estabilidade. A imprevisibilidade dos tempos atuais ficava de fora. O acelerado do tempo das ruas se detinha na porta da sua sala. Nessa cápsula, cuja combinação de móveis e utensílios foi se formando ao longo dos anos, ele seguiria sem sobressaltos no estimado serviço público.

Mas a política tem a capacidade de provocar mudanças bruscas na administração. Aquilo que parecia bem estabelecido, pode sofrer inflexões impensáveis, a depender dos resultados eleitorais. O fato é que um novo grupo ascendeu ao poder, com desprezo pelo que até então se fazia, e ganas de tudo modernizar. Essa onda chegou à repartição, até então uma instituição apagada, pouco cobiçada pelos políticos. Ela agora ganharia um adjetivo ao seu nome tradicional, para mostrar que estava em dia com os novos tempos. E uma jovem e dinâmica diretora, vinda de uma empresa que tivera grande sucesso nos últimos anos, passaria a comandá-la.

Paredes foram derrubadas, mesas foram substituídas por baias, todos agora veriam a todos, todos estariam formalmente no mesmo nível hierárquico. Até a sala da direção passava a ser envidraçada, apenas resguardada por persianas que, em momentos necessários, eram acionadas. Na padronização da mobília agora vigente, não haveria lugar sequer para cadeiras trazidas de casa.

Despojado de seus símbolos de prestígio e autoridade, oprimido por uma nova claridade que passou a varrer toda a repartição, sua individualidade reduzida a um pequeno porta-retratos com a foto da família, o funcionário definhou, perdeu o brilho. Apequenado na sua baia, seguiu realizando seu trabalho, que agora lhe parecia enfadonho e sem sentido. E criou um calendário para marcar, dia a dia, o tempo que lhe faltava para a aposentadoria.

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Roberto Anderson é professor da PUC-Rio, tendo também ministrado aulas na UFRJ e na Universidade Santa Úrsula. Formou-se em arquitetura e urbanismo pela UFRJ, onde também se doutorou em urbanismo. Trabalhou no setor público boa parte de sua carreira. Atuou na Fundrem, na Secretaria de Estado de Planejamento, na Subprefeitura do Centro, no PDBG, e no Instituto Estadual do Patrimônio Cultural - Inepac, onde chegou à sua direção-geral.
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