Roberto Anderson: O muro, o presídio e a cidade

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Na rua Frei Caneca, ali no Catumbi, houve, durante mais de cem anos, um presídio. Em 1840, ele foi criado como Casa de Correção Frei Caneca. Ao longo dos anos, diversas outras unidades foram sendo construídas, incluindo o Manicômio Judiciário e o Hospital Penitenciário. A parte visível do presídio era o seu grande muro, composto de um mosaico de técnicas construtivas. Partes eram em pedras aparelhadas, outras em pedra e cal, ou em tijolos maciços, e outras ainda, em concreto. Acima desse muro, encontravam-se guaritas em pedra e, em posição central, o portal, de feição neoclássica, único elemento restante.

Enquanto existiu, o presídio da Frei Caneca viu sofrimentos, rebeliões e também serviu de locação para filmagens. No entanto, tudo se foi, tudo foi demolido à exceção do portal, que lá permanece solto, isolado, deslocado do seu contexto. No lugar do presídio foi construído um projeto padrão do Minha Casa, Minha Vida, uma repetição da arquitetura pobre e despersonalizada que se fazia para o BNH décadas atrás.

A reutilização da área do presídio foi um tema que frequentou as preocupações municipais e, por conseguinte, as páginas dos jornais, durante muito tempo. Diversos projetos foram pensados para lá, sem que viessem a se concretizar. Por fim, a Prefeitura do Rio de Janeiro fechou um acordo com o Estado do Rio de Janeiro, que garantiu a desativação do presídio, para em seu lugar construir unidades habitacionais.

A demolição do conjunto se deu sem nenhuma análise do potencial das construções lá existentes. Como eram de épocas distintas, havia variações entre as mesmas, que não foram consideradas. Nada ficou que contasse a memória do presídio centenário. Nem sequer seu muro ou parte do mesmo. Como na demolição do presídio da Ilha Grande, no Governo Brizola, mais uma vez se apagaram os elementos físicos que remetiam a um passado não muito brilhante.

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Hoje, passados alguns anos da demolição do presídio, vale a pena fazer uma reflexão sobre como se dão esses processos de renovação urbana entre nós. Como os governantes tomam decisões radicais sem consideração à história, à paisagem da cidade e ao Patrimônio Cultural. Assim foi com a demolição, não muito longe dali, da Fábrica da Brahma, na administração Eduardo Paes, para a ampliação do Sambódromo. E com a demolição do prédio da Gastal, na Avenida Brasil, projeto de Paulo Antunes Ribeiro, para a construção de uma feiosa alça da Linha Vermelha, na administração Luiz Paulo Conde.

Podemos pensar como teria sido manter uma parte do muro do presídio e algum pavilhão, dos tantos que lá havia. A força do muro do presídio estava na sua presença ao longo de um bom trecho da Rua Frei Caneca, tendo se constituído num limite claro para a área de residências e de comércio. As casas térreas e sobrados, que se estendem desde as bordas da Avenida Presidente Vargas, pareciam ali estancar o seu espraiamento. Havia um contraste interessante entre suas baixas alturas e a do muro, agora demolido. Como um burgo que se contivesse ante sua muralha. O longo tempo que a cidade conviveu com aquela presença o havia incorporado à paisagem, de uma forma bastante significativa. Não, não se elimina assim um registro de quase dois séculos de existência.

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Venceu a simples supressão do muro e dos pavilhões do presídio, bem como a destruição de todas as edificações lá existentes. Perdeu-se a possibilidade de utilização do seu potencial paisagístico, que a exemplo dos Arcos da Lapa, poderia, em menor escala, continuar a servir como referencial para a área. Várias partes do muro poderiam ter recebido aberturas, com vistas à integração com o novo bairro que se ergueria onde havia o presídio. Que efeitos surpresa não se poderia obter pela passagem através das possíveis aberturas no muro, que descortinariam ambientes urbanos tão diferentes entre si, já que separados por dois séculos, mas perfeitamente integrados em suas diferenças!

Parecemos acreditar que a memória do sofrimento de tantos quantos lá cumpriram suas penas e o horror das rebeliões e das condições desumanas de encarceramento foram apagadas com a simples destruição das edificações. Pelo contrário, ela permanecerá presente, como fantasmagoria desse passado, sempre convivendo com o nosso presente.

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Roberto Anderson é professor da PUC-Rio, tendo também ministrado aulas na UFRJ e na Universidade Santa Úrsula. Formou-se em arquitetura e urbanismo pela UFRJ, onde também se doutorou em urbanismo. Trabalhou no setor público boa parte de sua carreira. Atuou na Fundrem, na Secretaria de Estado de Planejamento, na Subprefeitura do Centro, no PDBG, e no Instituto Estadual do Patrimônio Cultural - Inepac, onde chegou à sua direção-geral.
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