Roberto Anderson: Ocaso de um bairro carioca

'O Catumbi é um bairro que passou por uma longa e contínua desestruturação'

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Brahma antes e depois

O Catumbi é um bairro que passou por uma longa e contínua desestruturação. Já em 1980, o excelente livro “Quando a Rua vira Casa”, de Marco Antônio da Silva Mello e Arno Vogel, com ilustrações de Orlando Mollica, retratou como os moradores foram afetados pelas demolições ali realizadas para a construção do viaduto de triste nome (31 de março), que liga o Túnel Santa Bárbara à Área Portuária. Aliás, que prefeito terá a coragem necessária para sanar esse problema?

Em 1984, foi construído o Sambódromo, que consolidou a separação entre os dois lados do bairro: aquele junto à encosta de Santa Teresa e o restante, nas proximidades do Cemitério do Catumbi e do antigo presídio da Frei Caneca. O arquiteto Augusto Ivan de Freitas Pinheiro, atual Secretário de Urbanismo do Rio de Janeiro, tempos atrás, analisou essa ruptura em brilhante artigo de página inteira no antigo Caderno B do Jornal do Brasil.

O presídio foi desativado e integralmente demolido no governo Cabral. Ao contrário do ocorrido no Carandiru, em São Paulo, onde dois pavilhões foram mantidos e ganharam novos usos, do presídio da Frei Caneca nada sobrou. Ou por outra, sobrou apenas o portal desconectado do contexto original. Por mais dolorosas que sejam suas histórias, resquícios de antigos presídios podem nos ensinar sobre as mazelas de nossas sociedades. Mas, como fez Brizola com o presídio da Ilha Grande, nossos governantes preferem o apagamento desses testemunhos da brutalidade humana. 

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Prometia-se a construção de edifícios residenciais no lugar do antigo presídio, e havia a esperança de que um bom projeto fosse escolhido. Vã esperança. O projeto edificado foi um conjunto habitacional do gênero Minha Casa Minha Vida, cuja implantação e tipologia tem pouca integração com a arquitetura e o tecido urbano do bairro.

O último golpe veio em 2011, com a demolição da Fábrica da Brahma, imóvel que era parte da área de ambiência do tombamento do Sambódromo. Com os órgãos de tombamento pressionados pelos governantes, a absurda demolição foi aprovada. Concretizou-se uma operação financeira, cujo balanço não ficou muito transparente. A cervejaria pagou a construção de mais um trecho do Sambódromo e em troca ganhou o direito de demolir sua fábrica histórica para erguer em seu lugar uma lâmina com 80 metros de altura (vinte pavimentos). Alguns elementos decorativos do edifício foram enviados para Petrópolis, ou seja, nem aqui ficaram.

O edifício projetado por Oscar Niemeyer (mais de seu escritório do que do próprio autor, já que o mesmo se encontrava bastante doente à época), um objeto prismático de vidros escuros espelhados, se insere como outro alienígena numa área que ainda conta com dezenas de sobrados ecléticos e edifícios da qualidade do Hospital Escola São Francisco da UFRJ. Ao comentar sua construção (O Globo de 01/12/2013), bem como o potencial da área para o mercado imobiliário, o então presidente do órgão de Patrimônio municipal se entusiasmou dizendo: Agora parece que vai! Realmente não tem sido fácil a proteção de paisagens culturais nesse nosso Rio de Janeiro dos dias atuais. Passados tantos anos, o novo edifício permanece subutilizado, um elefante cinza no Catumbi, que segue esvaziado e maltratado.

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Roberto Anderson é professor da PUC-Rio, tendo também ministrado aulas na UFRJ e na Universidade Santa Úrsula. Formou-se em arquitetura e urbanismo pela UFRJ, onde também se doutorou em urbanismo. Trabalhou no setor público boa parte de sua carreira. Atuou na Fundrem, na Secretaria de Estado de Planejamento, na Subprefeitura do Centro, no PDBG, e no Instituto Estadual do Patrimônio Cultural - Inepac, onde chegou à sua direção-geral.
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5 COMENTÁRIOS

  1. Gostaria de agradecer os comentários, especialmente aqueles de Felipe Berocan Veiga, Marco Antonio da Silva Mello e
    Leticia Freire. Realmente, houve um equívoco na atribuição da autoria do livro Quando a Rua vira Casa, agora já sanado no texto publicado. Peço desculpas pela confusão.

  2. É importante trazer novamente ao debate o bairro do Catumbi, um bairro profundamente marcado por intervenções urbanas radicais que se tornou um caso internacionalmente conhecido e discutido graças ao atuante movimento social do bairro, com destaque para a figura do Padre Mário Prigol, pároco da Igreja de Nossa Senhora da Salette. Vale lembrar que os edifícios do conjunto Ferro de Engomar, logo na entrada do Túnel Santa Bárbara, também destoam muito do restante do bairro, embora projetados por Marcos Konder Neto e construídos com o bom propósito de receber parte dos moradores do Catumbi que tiveram suas casas demolidas. Quanto à questão da autoria do livro “Quando a Rua Vira Casa”, jamais foi atribuída a Carlos Nelson por ele mesmo, basta ver em seu currículo e a referência que o próprio faz aos antropólogos Arno Vogel e Marco Antonio da Silva Mello e a seu livro, inicialmente publicado como relatório do CPU-IBAM em 1980, em “Movimentos Urbanos do Rio de Janeiro” (1981). Esse ponto foi finalmente esclarecido na Apresentação à 4a. edição de “Quando a Rua Vira Casa” (Niterói: Eduff, 2017), escrito por mim em parceria com a Profa. Soraya Silveira Simões (IPPUR-UFRJ). Vale a pena ler para contextualizar melhor a pesquisa, o livro e o trabalho do IBAM na época.

  3. Anderson, li com interesse seu artigo. Entretanto, gostaria de recomendar que você dessa uma olhada na 4a. Edição de QARVC (EDUFF, 2017). Estou certo que poderá ajudar você a melhor situar as coisas e assim corrigir e precisar algumas informações a respeito de QARVC. Recomendo especialmente que leia e considere com atenção a *Apresentação: uma luz no fim do túnel*, da autoria de Felipe Berocan Veiga (PPGA-UFF) & Soraya Silveira Simões (IPPUR-UFRJ), pois é texto esclarecedor e bem documentado a propósito da autoria do livro ao qual você se refere. A edição é de fácil acesso, embora novamente esgotada, como ocorreu com as anteriores, pois há vários exemplares da referida edição (2017) na biblioteca da PUC-Rio. Aliás, essa 4a. edição, Anderson, foi lançada na EAU-UFF (por iniciativa de Geronimo Leitão, diretor da Escola); na UFF de Campos, por iniciativa dos antropólogos Carlos Abraão Valpassos e José Colaço, com o apoio do LESCE-UENF; na própria livraria da EDUFF, em Niterói, e também foi lançada na PUC-Rio e discutida numa concorrida mesa-redonda (bem ali, sob os pilotis!) promovida pela Coordenação do Curso de Arquitetura. Ou seja, trata-se de uma edição bem conhecida da maioria dos professores e professoras do departamento e dos alunos e alunas do curso de graduação e pós-graduação em arquitetura. Na FAU-UFRJ foi objeto de longa, agradável e concorrida apreciação por duas vezes nos quadros da disciplina Projeto II, então sob a responsabilidade de nosso colega Cristóvão Duarte. A edição Argentina aguarda ainda a oportunidade de um lançamento de acordo às regras e etiquetas acadêmico-institucionais daquela comunidade. Uma edição francesa ainda está sendo negociada. Sugiro que também leia com atenção todos os créditos das edições anteriores, pois certamente vai constatar que meu colega e saudoso amigo Carlos Nelson Ferreira dos Santos jamais declarou que era autor ou mesmo coautor de QARVC. Enfim, espero que realmente possa consultar a edição de 2017 (4a.) de QARVC. Fico por aqui, Anderson, na certeza de que meus parceiros Arno Vogel e Orlando Mollica poderiam perfeitamente subscrever as minhas palavras. Um abraço. Marco Antonio da Silva MELLO.

  4. O livro “Quando a rua vira casa” não foi escrito por Carlos Nelson Ferreira dos Santos, mas pelos antropólogos Arno Vogel e Marco Antonio da Silva Mello. Carlos Nelson era apenas o coordenador do IBAM à época da pesquisa e, como tal, a apoiou, mas a autoria é dos antropólogos, como foi esclarecido na última edição do livro, publicada pela EdUFF em 2017. Tirando essa correção a ser feita, a matéria é ótima.

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