No mundo todo, a noção de Patrimônio passou por uma revisão conceitual, que implicou na ampliação das categorias e bens a serem considerados como tal. No Brasil, como não poderia deixar de ser, essa evolução levou à incorporação de bens que não se enquadram nas visões tradicionais sobre arte e cultura, mas que são pertinentes ao conceito mais amplo de Patrimônio Cultural. Como consequência, houve a abertura para a proteção também de bens que foram elaborados por pessoas negras, ou que estão embebidos de valores da cultura negra. Esse é um aspecto importante do processo de ampliação da visão sobre Patrimônio, não ainda devidamente ressaltado, e que apenas começa a ser observado na ação do Instituto Estadual do Patrimônio Cultural, o Inepac.
O que se quer chamar a atenção aqui é para uma situação bastante diferente daquela observada, por exemplo, no tombamento da Fazenda Machadinha, em Quissamã, onde a senzala foi preservada como parte do conjunto. Aliás, ela é atualmente o único elemento daquele conjunto ainda razoavelmente mantido, já que a tradicional incúria com os bens de Patrimônio levou ao arruinamento da casa grande. Não se trata, tampouco, do tombamento de boa parte da arquitetura produzida até o século XIX, que usou mão de obra escravizada.
O tombamento, em 1984, da Pedra do Sal, na Área Portuária, é um belíssimo marco dessa possibilidade de novos olhares. É o reconhecimento dos valores agregados a um acidente físico pelo trabalho de braços negros, pela cultura do samba, pelo estabelecimento de um território negro na Cidade do Rio de Janeiro, a Pequena África, e pela afirmação da ocupação de um lugar.
Em 1983, já havia ocorrido o tombamento da Casa da Flor, obra da paciência e obstinação de Gabriel dos Santos, nascido em 1893, filho de ex-escravizado, que juntou caquinhos de cerâmicas para fazer uma linda casa de sonhos em São Pedro da Aldeia. Nesse mesmo ano ocorreu o tombamento do mural “Samba e Carnaval”, de Di Cavalcanti, realizado em 1929 no Teatro João Caetano, o primeiro mural modernista do Brasil. Lá está uma representação do povo brasileiro, da sua música, mulheres e homens negros, o morro e a vida das ruas.
Em 2001, o Estado do Rio de Janeiro tombou a igreja de Santo Elesbão e Santa Efigênia, no Centro, construída por uma confraria de negros, reverenciando os dois santos que, mesmo sendo ambos etíopes, viveram em momentos distintos. Infelizmente, ela não se encontra bem conservada. E em 2016, foi feito o primeiro tombamento pelo Estado de um terreiro, a Casa de Candomblé Ilê Axé Opô Afonjá. Ele havia sido fundado em 1896 numa casa na Pedra do Sal, tendo se mudado em 1947 para o local atual, um loteamento de casas simples em São João de Meriti.
Em 2018, em sequência ao reconhecimento pela Unesco como Patrimônio Mundial, o Inepac realizou o tombamento do sítio arqueológico do Cais do Valongo, que hoje é o ponto focal da memória da escravização e do traslado forçado de africanos para o Brasil.
Sem os avanços ocorridos na compreensão da complexidade da produção cultural, e a consequente ampliação do conceito de Patrimônio, bens ligados à cultura negra não teriam sido enxergados e protegidos. Até o momento, são esses os bens dessa natureza tombados pelo Estado do Rio de Janeiro. Poucos, não é mesmo? Mas a porta se abriu e é preciso passar.