Roberto Anderson: Tudo parece normal

'É vital haver pessoas nas ruas, não só de dia, como de noite. Mas o medo vem mantendo as pessoas fora delas. A cidade morre quando nos acostumamos a isso'

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Foto: Madrugada RJ/Instagram

Um homem que caminha pelas noites do Rio registra em sua câmera a desolação das ruas vazias da cidade. Em seu caminho não há rodas de samba, nem bares cheios. Há somente o vazio das ruas de uma cidade amedrontada. Suas postagens em redes sociais mostram passarelas desertas, becos desertos, ruas desertas. Muito raramente se vê as luzes vermelhas do giroscópio de algum carro da polícia, estacionado em alguma rua também deserta. Os ladrões de fios não se deixam ver e os moradores de rua se mimetizam às calçadas. 

Tudo parece normal. Seguimos trabalhando, indo à escola ou à faculdade, cuidando dos filhos e dos mais velhos, fazendo almoços de família e, de vez em quando, encontrando os amigos. Mas a violência paira sobre o Rio de Janeiro e cidades vizinhas. 

Segundo o Instituto de Segurança Pública, essa violência vem caindo. Em 2022, os crimes de letalidade violenta no Estado do Rio de Janeiro caíram 5,8% em relação ao ano anterior (apesar de o feminicídio ter subido 30,6% naquele ano). O problema é que esses crimes ainda estão em patamares muito altos, tendo havido 4.485 vítimas em 2022. Da mesma forma, os roubos de rua caíram 6,6%. Mas como ficar tranquilo quando 62.092 pessoas sofreram esse tipo de violência, em 2022, no Estado, número esse que sabemos padecer de subnotificação.

Quase todos os dias, balas chamadas de perdidas, saídas das armas de bandidos e de policiais enlouquecidos por uma guerra sem fim, encontram corpos de crianças, em casa ou na escola, de mulheres em seus afazeres, de homens a caminho do trabalho. Guerra sem possibilidade de sucesso no caso do combate às drogas.

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Entre julho de 2016 e novembro de 2022, ou seja, em pouco mais de seis anos, o Instituto Fogo Cruzado contabilizou 1.000 pessoas atingidas por balas perdidas na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Neste ano de 2023, entre janeiro e abril, na mesma região, já houve 1.182 tiroteios/disparos de arma de fogo, que atingiram 14 crianças. 

Nesta semana, uma triste história. A bala não achou o menino, mas, ao contrário, ele achou uma bala não detonada. Curioso, levou-a para casa e experimentou o que aconteceria caso a aquecesse com um isqueiro. A resposta causou a sua morte. Temos que nos perguntar por que uma bala deve estar solta por aí, podendo destroçar a curiosidade de uma criança?

Essa violência não é uniforme na cidade. Buscando medir a violência nos bairros da cidade do Rio de Janeiro, a imobiliária Loft utilizou as categorias homicídio, roubo, furto e total de ocorrências levantadas pelo Instituto Fogo Cruzado. Por essas categorias, os bairros mais violentos da cidade seriam Bangu, Gericinó, Padre Miguel e Senador Camará, os quais se encontram na Zona Oeste. Enquanto isso, Santa Teresa, Gávea, Jardim Botânico, Lagoa, São Conrado e Vidigal estão entre os bairros menos violentos.

A violência é também tremendamente desuniforme, quando se considera o aspecto racial. Em 2022, 70,4% das vítimas de crimes de letalidade violenta eram pretas ou pardas, enquanto os brancos representaram apenas 20,0% do total. Como as áreas menos atingidas são aquelas de moradia das classes média e alta, e a população branca, historicamente mais privilegiada, sofre menos, há uma certa acomodação com a situação.  

Mas a palavra medo está cada vez mais presente no cotidiano das pessoas. Há quem saia de casa e já comece a temer. Um medo que pode parecer exagerado, mas que nasce de uma situação real. Há pessoas que sonham sair da cidade ou do país. E há a maioria, que renuncia a flanar à noite, que não se sente livre para passear apreciando o ar da noite. Se saem, o fazem de ponto a ponto, com um carro de aplicativo ou um táxi no meio.

É vital haver pessoas nas ruas, não só de dia, como de noite. Mas o medo vem mantendo as pessoas fora delas. A cidade morre quando nos acostumamos a isso. Os poderes públicos têm muito a fazer. O governo estadual, responsável pela segurança pública, precisa olhar a metrópole como um todo, e levar a todos padrões de segurança civilizada, respeitosa, não racista e efetiva. A Prefeitura, apesar de não ser responsável pelas forças de segurança, tem muito a fazer também. Se incentivar a permanência das pessoas nos espaços públicos, através da criação de espaços acolhedores e propícios ao encontro, já ajudará muito.  

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Roberto Anderson é professor da PUC-Rio, tendo também ministrado aulas na UFRJ e na Universidade Santa Úrsula. Formou-se em arquitetura e urbanismo pela UFRJ, onde também se doutorou em urbanismo. Trabalhou no setor público boa parte de sua carreira. Atuou na Fundrem, na Secretaria de Estado de Planejamento, na Subprefeitura do Centro, no PDBG, e no Instituto Estadual do Patrimônio Cultural - Inepac, onde chegou à sua direção-geral.
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4 COMENTÁRIOS

  1. A violência reduziu ou foi a cultura que esmoreceu? Sem gente na rua, é muito compreensível a queda de alguns números, o que não reflete em aumento de segurança. Uma mudança comportamental foi catalisada pela pandemia. Os mais jovens estão cada vez mais virtuais e a vida noturna cada vez mais miúda. Menos gente, menos segurança. A cultura noturna,.a.tao famosa boêmia, parece ferida de morte.

  2. Obrigado pelo comentário Marcel. Concordo com você, houve uma mudança de hábitos. Mas, ainda assim, a ocupação das ruas está muito aquém do seu potencial. E uma sociedade de indivíduos isolados em suas casas não é muito desejável.

    • Esse isolamento que você menciona é por conta da insegurança ou por conta do excesso de tecnologia? Insegurança sempre houve; a novidade, então, é a tecnologia. É possível reverter essa tendência? Fica a reflexão.

  3. É verdade que a violência urbana assusta (ou a sensação dela), mas a percepção do mundo e os hábitos também mudaram, e isso não tem a ver com violência.

    No passado, se o sujeito queria assistir a um filme e comer uma pizza, tinha que sair de casa, ir a um cinema e depois a uma pizzaria; se não tivesse carro nem tanta grana assim para o táxi (que sempre foi caro), ia de transporte coletivo (que era mais em conta). Hoje, ele assina um canal gringo de streaming e pede a pizza pelos aplicativos. Se quiser ir a um barzinho encontrar os colegas ou assistir a um show, uma peça de teatro, ou mesmo um filme dentro de um shopping center (e só aí, pois os cinemas de rua fecharam há anos), ele chama um desses transportes individuais por aplicativos que levam o sujeito da porta de sua casa até a porta do local de destino, e vice e versa. Pedalando pelas ruas à noite, eu quase não vejo pessoas andando pelas calçadas, mas vejo muitos carros circulando. Certos locais da Zona Sul diferem um pouco deste quadro, mas só um pouco.

    A violência urbana era pior no passado: na época da Eco 1992, a cidade do Rio tinha um índice de homicídios em torno de 60 por grupo de 100 mil habitantes. Hoje, não chega a 30 (já esteve pouco acima de 20 até poucos anos atrás, mas voltou a subir nos últimos 6 anos). Me lembro bem que quase todo mundo que eu conhecia e que usava ônibus comuns tinha uma história de assalto dentro de coletivo para contar, e era quase todo dia mesmo. Hoje, mesmo que ocorram, são menos frequentes. Só como exemplo ilustrativo, no início dos anos 90, fui assaltado logo que saí do meu prédio, num domingo à tarde, quando ia a pé visitar um colega.

    Ainda que se consiga reduzir a violência e a sensação dela (isso vai exigir ética dos meios de comunicação), o que fazer para convencer as pessoas a sair de casa, SEM CARRO, para se divertir na rua? O que a rua ainda pode oferecer de tão vantajoso para uma geração que acredita, desde muito jovem, que as coisas interessantes no mundo estão na telinha de um smartphone? Clicou, pronto, aconteceu, sem precisar sair do lugar! Imaginem, então, quanta tecnologia estará disponível para as gerações que ainda estão por vir…

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