A beleza da Democracia está na sua imprevisibilidade. Muitas vezes é duro assistir a escolha dos outros se impor a nossa, ignorando todos os nossos estudos e esforços. É como se ela resumisse a vida: insubstituível, linda, vigorosa e, muitas vezes, injusta. Mas esta semana eu comemoro o fato da Democracia ter dado um largo sorriso para quem ama o Rio de Janeiro. É que a Câmara dos Vereadores do Rio fez valer a Lei nº 8.053/2023, de minha autoria, derrubando o veto do engodo chamado Eduardo Paes.
A Lei foi criada para dar o Selo Patrimônio Histórico Comercial aos comércios que existem e insistem no Rio de Janeiro há mais de 40 anos. Quem caminha pelo Centro conhece a Confeitaria Colombo, a Casa Cavé e a Confeitaria Manon, por exemplo. São locais em que nossos avós e nossos pais nos apresentaram com histórias pessoais, além, claro, das histórias das próprias lojas que permeiam a construção simbólica da nossa cidade. São memórias vivas que permitem as gerações viverem conscientemente a História e introduzirem a dimensão do “outro” em si mesmos a ponto de reconhecerem que também fazem parte dela.
Acho que todos ficamos entusiasmados quando estamos em locais antigos que exalam História, então não faz sentido algum deixar o coração da nossa cidade de fora. O reflexo dessa valorização já deveria estar sendo trabalhada no ambiente escolar, através da matéria História do Cotidiano, que trata da memória viva, na qual o aluno aprende de forma ativa, deixando de lado o caráter passivo das salas de aula – que são um prato cheio para professores despreparados que querem formar massas de manobras, ao invés de sujeitos críticos e pensantes. Afinal, as identidades individuais e coletivas são formações essenciais que traçam o destino de uma sociedade. Por isso, apenas falar que o Centro Histórico do Rio de Janeiro é bonito ou interessante, por mais elogioso que seja, é pouco.
Valorizar ou desvalorizar “lugares de memórias” ou lugares históricos diz muito sobre a sociedade que se quer (des)construir. Todos nós – cidadãos e, principalmente, autoridades – somos responsáveis pela criação e conservação desses locais que representam as casas das nossas famílias. Vamos pegar o exemplo da Alemanha. No período pós Segunda- Guerra, ou seja, pós-nazismo, houve uma tentativa de reprimir os erros terríveis cometidos pela nação (não apenas por seu comandante). Ninguém queria lembrar nem se responsabilizar pelas milhões de vidas massacradas, torturadas e perdidas. Teóricos se debruçaram sobre o tema para tentar diminuir a culpa estampada na cara de todos. Mas, a História tem sua dose de ironia. Jürgen Habermas, um sociólogo alemão, impõe sua teoria ao reler Freud, um judeu que teve que fugir dos nazistas, afirmando que uma sociedade só é capaz de viver o presente, se tiver consciência do seu passado, mesmo que ele seja vergonhoso e que demande luto.
Na minha visão, desvalorizar a cultura e a história, seja ela com H maiúsculo ou apenas a cotidiana, é evitar a construção da nossa cidade, pois ela não está acabada, ao contrário, ela está acontecendo diariamente e é possível mudá-la. A História Cotidiana que hoje pode fazer parte da grade escolar é uma ferramenta que permite enxergar a história social a ponto de redimensionar a visão política. É um poder imprescindível para quem quer continuar a viver numa Democracia. Todos sofremos com a pandemia e suas consequências devastadoras. Certamente, perder tantas pessoas foi a pior parte, pois é um dano irreparável. No entanto, há também a questão econômica, poderosa a ponto de redesenhar a História a qualquer tempo. Como este é o ponto possível de interferência, veio a ideia da nova Lei.
O Selo Patrimônio Histórico Comercial é um elemento de força para os comerciantes que sobreviveram à pandemia e ainda sobrevivem à desordem crônica que caracteriza as ruas do Centro do Rio. É um gesto humilde que ofereço para investir nas memórias e incentivar a cultura, a economia e o turismo. Mas, para quem quer destruir a Educação, com a inclusão de funks eróticos nas escolas, ignorar o esforço econômico e a capacidade cultural do Centro, é certamente uma derrota. Sua caneta falhou ao tentar riscar a Lei porque até quem você comprou com cargos, não suportou sua petulância.
Rogério Amorim é vereador do Rio de Janeiro pelo PTB e neurocirurgião do Hospital Gaffreé e Guinle