Som e fúria: música e saúde mental

Antes, durante e certamente depois da pandemia, ouvir músicas vai continuar sendo fundamental para o bom funcionamento do físico e do mental de todo ser humano

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Pedalando para ir jogar bola em um campo próximo à Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá, na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro, eu quase sempre me deparava com um homem, paciente do hospital psiquiátrico que funciona lá. No meio da pista, quando eu passava, ele gritava: “Cadê meu rádio? Eu quero ouvir música”. Eu tinha uns 16 anos e esse áudio ainda ecoa na caixa craniana. Era uma voz grave, extensa, que se ampliava entre árvores e pessoas que ali estavam em meio ao vento natural e o ciclone causado por minha velocidade para chegar logo ao futebol. Na molecagem, eu costumava responder: “Amanhã, eu trago”. A tréplica dele era com as mãos, meio nervoso. Eu era muito novo, não tinha retrovisor. No dia seguinte, lá estava o cara, dizendo a mesma coisa, no mesmo lugar.

Ele frisava a frase: “Eu quero ouvir música”. Havia muita certeza no som que saía da boca do homem. Não sei qual era o distúrbio psiquiátrico dele. Não tenho nem ideia. Contudo, sei que os pacientes da Colônia Juliano Moreira que ficavam andando livremente nas proximidades do hospital eram os de quadros mais leves. O que também sei é que a musicoterapia é muito utilizada no tratamento de problemas relacionados à saúde mental. Talvez, o homem que eu encontrava com frequência há quase 15 anos também soubesse disso. Há sempre alguma razão na loucura. Já dizia alguém cheio de razão.

De acordo com o site Psicologia Viva, musicoterapia é uma forma de tratar os pacientes através da música. É uma técnica que trabalha com a saúde ao utilizar formas diversas de aprendizado, expressões e arte, trazendo prevenção e promoção de saúde para todos. A música faz com que sintamos emoções positivas ou negativas. Ela evoca emoções que são ativadas em partes e áreas de nosso cérebro, como, por exemplo, córtex, amígdala, cerebelo, hipocampo, etc. Essas áreas são mais desenvolvidas e ativadas positivamente ao serem trabalhadas com a música. Melhora o humor, a atenção, concentração, a memória e lembranças profundas.

Em texto publicado na página da Unidade Intermediária de Crise e Apoio à Vida (UNIICA), a musicoterapeuta Eliziê de Souza disse que, na área de saúde mental, a musicoterapia auxilia no tratamento dos pacientes com transtornos psíquicos e com dependências químicas: “É uma ferramenta importante nos tratamentos, pois ela promove o início da interação com paciente. Utilizando-se dos elementos da música como o som, a harmonia, e o ritmo, ela é capaz de auxiliar o paciente ou o grupo a combater as várias patologias que envolvem o desenvolvimento, a comunicação, o relacionamento, a aprendizagem, expressão e a organização física, mental ou social”.

Além disso, a musicoterapia vem se mostrando uma ferramenta importante para tratamentos após um acidente vascular cerebral (AVC), principalmente nos casos em que a pessoa desenvolve sequelas. Nessas situações, a recuperação se torna mais suave e natural. A ideia se encaixa em outras doenças, como o Alzheimer e o Parkinson.

“Atualmente, com o avanço dos estudos sobre o Transtorno do Espectro Autista (TEA), é possível destacar a música como um recurso eficaz em seu tratamento. A musicoterapia vem crescendo junto com as demais intervenções realizadas entre esses pacientes, já que o objetivo principal é criar através da música uma janela de comunicação social”, destacam Lafaelly Mirelly da Silva e Carlos Antonio de Sá Marinho em um artigo cientifico sobre o tratamento através da música.

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Ilustracão: Jonatan Sarmento/SAÚDE é Vital

Som, harmonia e novos ritmos para os dias. Foi assim com Ingrid Costa, promotora de vendas. Estressada com o trabalho, ela desenvolveu ansiedade, síndrome do pânico e depressão. Realizando um tratamento de musicoterapia, a vida voltou a um tom mais ameno.

“Me ajudou muito. Eu estava muito mal, os remédios já não estavam ajudando, meu tratamento não evoluía. Aí, pesquisei sobre a musicoterapia, fiz e ficou tudo melhor em pouco tempo. Na verdade, ainda faço. Passou a fazer parte da minha vida. Ainda mais. Sempre amei ouvir música e isso sempre ajudou de alguma forma a segurar a barra, só que o tratamento me deu uma perspectiva mais ampla da questão”, declarou Ingrid.

Vou aproveitar e adaptar um célebre verso do cancioneiro popular: “Quem não gosta música, bom sujeito não é. É ruim da cabeça ou doente do pé”. A livre adaptação da letra de Dorival Caymmi é minha, porém, poderia ter sido feita por Hilton Abi-Rihan. Radialista e jornalista com muita bagagem, ele sabe a importância de certas canções. 

Hilton Abi-Rihan apresentou, durante anos, o icônico programa de rádio ”Show da Madrugada”, na Rádio Globo. Muita gente ouviu a voz de Abi (como é chamado entre os mais próximos), todavia, ele também ouviu a voz de muita gente. E não estou falando somente dos artistas históricos para nossa música que tocaram na programação comandada por ele.

“O rádio é um companheiro. É amigo. Quase religião. Inúmeras vezes, as pessoas me falavam que eu as ajudei a sair de situações difíceis, de tristeza, ansiedade, solidão pesada, mesmo sem saber, falando algo na rádio ou colocando a música certa na hora certa. Ainda mais com o programa de madrugada. Até hoje, mesmo com o rádio tendo passado por tantas mudanças, ainda ouço as pessoas falando coisas do tipo para mim”, conta o radialista, já com mais de 80 anos, entretanto, sem perder a clássica voz.

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Ilustração: Jornal Portal

De fato, o rádio passou por mudanças. Agora, ele cabe em um aparelho celular. A forma de ouvir música se transformou drasticamente. No entanto, a soma de notas, das palavras e dos silêncios continua tendo o mesmo efeito sobre nós, meros ouvintes da vida. “A música nunca te trai”, me falou, certa vez, um amigo, Lula Zeppeliano, fundador de um grande fã-clube de Led Zeppelin. Um dos maiores do Brasil.

Durante a quarentena e as práticas de isolamento social realizadas para tentar conter a contaminação causada pelo Coronavírus, a música, em sua múltiplas composições, foi, para muita gente, a companheira que não trai.

Segundo dados das duas principais plataformas para se ouvir música na internet (Deezer e Spotfy), durante o período de isolamento social, os horários de pico de ouvintes passaram a não ser mais no começo da manhã e no fim da tarde. O consumo se tornou mais espalhado ao longo do dia. As playlists de música infantil, música clássica e músicas tristes cresceram. Freud explica?

Ele, eu não sei. Mas uma pesquisa, talvez. O estudo, feito pelo professor David Huron, na Universidade de Ohio, nos Estados Unidos, revelou que ouvir música muda a química dos nossos cérebros para nos ajudar a superar a dor. As canções tristes provocam um aumento de prolactina no cérebro.

“A prolactina é um hormônio proteico utilizado para ajudar a reduzir a dor, sendo liberado durante as atividades humanas básicas, como quando comemos, quando as mulheres ovulam ou amamentam e, talvez o mais importante, quando fazemos sexo”, explica David Huron.

Música é vida. Também durante a quarentena, as lives ganharam a rede e os ouvidos. Foram muitas apresentações de diversos artistas tocando e cantando para o público, que assistia tudo de casa. O show online com maior audiência no YouTube Brasil foi de Marília Mendonça, no dia 08/04, que alcançou 3,31 milhões de ouvintes. Os dados são da plataforma GaúchaZH e foram coletados até o dia 20/05. Segundo o YouTube, nosso país lidera oito posições na lista das 10 lives mais vistas até hoje no mundo todo.  

A última live que vi foi a de Caetano Veloso, no dia 07/08. A esperada apresentação foi a com maior audiência que o Globoplay exibiu. Entre outros artistas, a plataforma mostrou o show de Ivete Sangalo em casa. Caetano tocou 30 milhões de corações e mentes. Os dados são da Decode Pulse. As pesquisas de Deezer e Spotfy informam que, quando um artista ganha destaque em uma dessas lives, as buscas pelo nome dele na Internet disparam. Será que subiram as caças pelo nome de Veloso e seus filhos após o último dia sete de agosto? Imagino que sim.

Foto Reprodução Globoplay Som e fúria: música e saúde mental
Foto: Reprodução/Globoplay

Outra procura que cresceu em tempos de isolamento social foi a por instrumentos musicais. Um estudo da Compre&Confie, empresa de inteligência de mercado focada em e-commerce, mostra que a venda online desses produtos subiu 252,4% nos primeiros meses de quarentena no Brasil. “Como é bom tocar um instrumento…”, canta Caetano Veloso, em Tigresa.

“Eu moro sozinho, fiquei meses sem ver meus parentes e amigos. Ouvi muita música nesse período. Muita mesmo. Todo dia. Me ajudou muito. Acho que por isso que não surtei. A música você pode curtir sem estar tão concentrado nela, diferente da leitura, dos filmes. E, nesses tempos loucos em que fica difícil ter foco, ouvir música cai muito bem. Acho que me empolguei e comprei um violão [risos]. Comecei a aprender pela Internet. Ainda toco mal, mas estou gostando”, frisa Erick Barbosa, que é publicitário.

“Há quem construa os aviões, escreva as revistas, outros dedilham violões”, diz um trecho da música Bossa, de Duca Leindecker. Enquanto Erick dedilha seu violão, Leonardo Guedes, jornalista, não escreve as revistas e sim um blog. Um blog para falar de música.

“Eu já vinha me sugerindo a ideia desse blog há tempos, já que tive um blog falando sobre discos clássicos da MPB em outro veículo de imprensa (o SRzd), mas com outra proposta, falando especificamente de uma música. Então, vendo as pessoas procurando meios para ocuparem a mente quando o isolamento começou pra valer, botei a ideia em marcha, pesquisei ferramentas gratuitas de desenvolvimento de blog e a coisa fluiu rápido. Uma maneira de me entreter aos leitores e, por tabela, a mim mesmo”, pontua o jornalista.

O nome da página é Disse o Compositor. São muitos os compositores dizendo por aí que estão fazendo ou já fizeram músicas inspiradas direta ou indiretamente no momento conturbado em que estamos vivendo. Certamente, muito em breve, essas produções ganharão destaque. Vamos ver. E ouvir.

“Cadê meu rádio? Eu quero ouvir música”. A frase voltou a tocar em minha cabeça. Acho que amanhã vou passar, de bicicleta, perto da Colônia Juliano Moreira e levar um aparelho para o homem ouvir suas canções. Talvez, eu leve um celular.  

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