Tensão Flutuante: o Rio de Caetano Veloso

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Existem cidades que extrapolam os limites de seu próprio território. Para falar mais claramente: existem cidades que nem mesmo são territórios, mas terras sem horizonte definido, universos em expansão. Chico Science cantou que a cidade é uma máquina febril e inquieta que “não para” e “só cresce”; e, nesse movimento ascendente, ganha uma proporção que a catapulta para “além dos mares”. Mário Quintana completa a fala de Chico e declara que a cidade é um rio corrente onde assistimos “a vida continuando pelo mundo”. Nos dois casos, a cidade não se contenta em ser um simples pedaço demarcado de terra, sufocado por ruas, concreto e edifícios.

A cidade tem seus “quereres” e caprichos: ela quer ser cantada, exaltada, refletida, compreendida; ela quer ser um objeto de poesia; e, por isso, atravessar os mares, ser mais do que um metro quadrado fixado no mapa geográfico. Foi assim e sempre será graças à força do gesto poético. Caetano Veloso compõe o time de poetas que, similar da mesma forma que Science e Quintana, cantou a cidade no lirismo e na epopeia, declarando ora o amor ora a revolta por esse espaço comum que nos abriga e nos hostiliza, que nos cerca na mesma medida em que nos asfixia.

Caetano cantou algumas cidades: Salvador, Santo Amaro, Rio de Janeiro, São Paulo, Londres e Nova Iorque. Dedicou versos para cada uma,que não só reforçam a beleza de sua escrita, bem como elevam-nas ao nível daquilo que vai além dos mares: o nível dos objetos transcendentes. Cada canção escreveu o nome dessa cidade no livro da eternidade. Na Bahia, Caetano nasceu e formou seu caráter. Em São Paulo, desenvolveu sua intelectualidade. Mas foi no Rio que ele acumulou experiências marcantes em sua vida: aplausos e vaias nos festivais da canção, as amizades com Chico, Vinícius, Benjor e Paulinho da Viola, o contato com a bossa nova, o casamento, o nascimento dos filhos, as passeatas estudantis e o cárcere durante a ditadura.

O Rio é um objeto transcendente da poesia já no álbum Caetano Veloso (1967). “Paisagem útil” aparece como uma dialética que se opõe aopessimismo de Vinicius de Moraes. Se a lírica viniciana, com seu romantismo tardio, atribui inutilidade à paisagem carioca, uma vez que a mulher amada está ausente, Caetano repensa esse valor de forma positiva. Inspirado na estética dos poemas visuais do Concretismo, Caetano percebe que a cidade existe, antes mesmo do amor; e, com sua existência, temos a bordo um céu e um mar que “vão longe”, que suspendem luzes e cores que decoram a paisagem sempre renovadora dos “pobres, tristes, felizes corações amantes”.

No mesmo álbum, Caetano celebra Copacabana na alegre canção “Superbacana”. Fazendo uso do mesmo recurso plástico que “Paisagem útil”, Caetano canta a cidade explorando imagens, como numa tentativa de registrá-la de forma cinematográfica. Copacabana não é um território; é uma grande tela, um “mundo”, uma metrópole dentro da metrópole: “tudo” aterrissa e habita ali. Bairro singular da capital do Brasil, na época Copacabana era o eixo da modernidade musical e da cultura pop. “O mundo explode longe, muito longe/ o sol responde/ e tempo esconde/ O vento espalha e as migalhas caem todas sobre Copacabana”. Migalhas criadoras que, no fim, dão vida ao Tropicalismo.

No álbum Cinema transcendental (1979), Caetano mantém seu otimismo em relação à cidade. Depois de retornar de seu depressivo exílio em Londres, o Rio se tornou para ele espaço do desbunde, do hedonismo, dos encontros performáticos nas dunas de Ipanema. “Menino do Rio” traduz essa atmosfera hippie mesmo após o fim desse movimento. É na areia da praia que a cidade pulsa sua vida e deixa transparecer uma “tensão flutuante” muito característica de sua gente alegre e vadia: são corpos abertos ao espaço, calores provocantes, arrepios de nossa brasilidade morena, despudorada e viçosa.

 À noite, porém, quando “Lua e estrela” desponta no “céu da cidade”, Caetano é levado a cantar a letra de Vinícius Cantuária, gravada no álbum Outras palavras (1981). No mesmo tom hippie, o Rio é cantado como a cidade que é “espelho” de encontros amorosos livres e fortuitos, em que o poeta, perdido na boemia do Baixo Gávea, busca a “menina do anel de lua e estrela.”

Apesar da tentação de desbunde, nos meados da década de 1980 a poesia muda; Caetano passa a nos apresentar um Rio de Janeiro decadente e empobrecido, muito em razão do choque causado pelo crescimento demográfico, pela crise econômica turbinada pelo neoliberalismo e pelo aumento da violência urbana. Caetano se vê dividido entre o lirismo poético de “Valsa de uma cidade”, canção de Ismael Netto e Antônio Maria que ele gravou no álbum Caetano (1987), e a crítica social de “O Estrangeiro”, canção autoral do álbum homônimo O Estrangeiro (1989).

Em “Valsa”, o Rio é apresentado sob o olhar de outros poetas; vimos o hedonismo da cidade brilhar nos versos que são uma ode ao prazer. Amar o “vento do mar no rosto, “o sol a queimar”, a “gente feliz” a passar são razões para se viver no Rio; e quem ama o Rio também é amável, é objeto de poesia. Todavia em “O Estrangeiro”, o Rio amargura uma imagem negativa. A tensão flutuante é ambígua: alterna a alegria e o pavor. A Baía de Guanabara é “ao mesmo tempo bela e banguela”: irradia uma luz branca “das areias e das espumas” que encanta e uma sombra que obscurece, que causa cegueira aquele que no dia-a-dia a contempla e não a reconhece.

Caetano é cego: se iludiu com o Rio; de tanto tê-la como estrela, foi seduzido pela beleza. Urge aderir à cegueira criativa de Stevie Wonder e Ray Charles: na escuridão, revelar, iluminar. Por isso, ele toma uma posição crítica de quem olha perplexo como um estrangeiro. O Rio de Caetano também é cantado por suas mazelas; o Rio opressor onde “o certo é certo”, em que o “macho adulto branco” está“sempre no comando”; o Rio racista e classista que risca os índios e vira o rosto para suas desigualdades desprezando os pretos; o Rio que vive o “raro pesadelo” de uma metrópole neoliberal “que aqui começa a construir”; que, apesar de tudo, “passará”.

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