Um olho no padre e outro na missa – o Rio de Planet Hemp

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Cantar uma cidade é pensar essa cidade não como “objeto”, como “coisa” razoável.  Algo mais poderoso nesse gesto se impõe do que simplesmente entender o que “é” uma cidade. Gilles Deleuze e Félix Guattari declararam o seguinte em Oque é a filosofia? (1992): “pensar não é nem um fio estendido entre um sujeito e um objeto, nem uma revolução de um em torno do outro. Pensar se faz antes na relação entre o território e a terra”. A enraizada disposição entre um pensante e uma coisa pensada, dissecada e disseminada no ambiente intelectual desde o racionalismo de Descartes,é uma “má aproximação” entre nós e o mundo.

Revertendo esse quadro devemos, então, considerar que cantar uma cidade é pensar a relação cambiante entre o território e a terra. Nos artigos que redigi sobre esse mesmo tema, ou seja, sobre o modo inspirado de se cantar a cidade do Rio de Janeiro, usei como mote a poética de Caetano Veloso e de Luiz Melodia. Cada qual operando à sua maneira visões sobre a cidade; seja no caso de Caetano, formando uma paisagem “útil” que nos sinaliza aspectos simbólicos, seja no caso de Melodia, vivenciando na pele de gato os melindres da urbanidade.

Planet Hemp também desenvolve uma poética embasada na experiência singular com a cidade do Rio. Neles, parece-me que existe tanto a composição paisagística que interessou Caetano como a afetação presente em Melodia. Planet Hemp agrega as duas tendências: o contemplar e o viver. Porém, não vimos aquilo que Deleuze e Guattari acusam como aproximação negativa. Não há nas letras de MarceloD2, BNegão e BlackAlien a urgência em querer trancafiar um valor paradigmático no conceito da cidade. Eles não desenham em suas músicas imagens de como “é” o Rio, mas antes de como esse território respira, pulsa e se move.

O pensar age no sentido da terra, modificando-a; ele altera o espaço territorializando, desterritorializando e reterritorializando; assim, o pensamento compõe, decompõe e recompõe funções, conceitos e sensações. Nessa relação em devir não há sujeitos, nem cidadãos; existem territórios avançando sobre a terra, a fim de arranjarem o pensamento por cima ou no meio dela. Um corpo não é “sujeito” nem “objeto”, mas um território, um espaço de articulações que varia conforme outros territórios. Há uma linha dura como também uma linha móvel, flexível, que se incide sobre a terra. Isto quer dizer que existem territórios que são fortalezas inquebrantáveis e territórios que são abertura, possibilidade, diálogo, provocação, ruptura.

Planet Hemp canta uma cidade rachada entre esses dois territórios: o de linha dura e o de linha flexível. Ciente disso, o grupo de cantores influenciados pelo rap, pelo hardcore, pelo ska, pelo dub, pelo samba quer que sintamos o “peso do refrão”. Pensamento é um canto pesado, acelerado, nervoso e territorializa um contexto trágico: Rio é uma faca de dois gumes. A cidade constitui uma bifurcação territorial de dois diagramas opostos e complementares: o pensamento opressivo/reacionário e o pensamento libertário/problemático.

“A cidade é maravilhosa, mas se liga, mermão”. A paisagem é perigosa. “As aparências enganam”. Uma ostentação ofusca a outra. A beleza do Pão de Açúcar, acima da baía poluída e, principalmente, na frente da favela, contraria a maravilha. A favela está sempre “de costas”: para o mar, para a liberdade, oprimida pela linha dura de uma selva de pedra cruel. A cortina das aparências disfarça “chacinas brutais, uma porrada de sangue”. No território marginal, a “lei do silêncio fala mais alto”: “te calam por bem, ou vai pro mato”. Mas o artista contraria a lei.

Mesmo que a permanência no território carioca, para o pobre, seja uma neurótica topada com a encruzilhada, em que o “guarda prende” e o “branco toma”, ainda assim existe a Arte. O artista não se cala e segue sua caravana mesmo quando o cão ladra e morde. Unindo a “cabeça fria” com o sangue que “não é de barata”, o artista denuncia o que não consegue suportar. Sua “alma sem abrigo” fala um dialeto que é “perigo”, pois atiça problemas que incomodam diretamente crenças e valores do território linha dura. Sua rima xinga e afronta.

Planet Hemp encontra a linha de fuga para a opressão. Viver no Rio é manter um diálogo que somente a linha móvel é capaz de efetuar: a conexão entre o morro e o asfalto. Planet nos mostra uma ética territorial onde a segurança é prerrogativa de uma vida sagaz; mas ela é subjetiva: cada qual faz a sua. O artista se defende, mas bombardeando “com rima por todos os lados”. Seu inimigo é o Estado como se configura: um território estagnado e regressivo.

O Estado é inimigo porque revela uma aparelhagem falha e viciada que irrita. A polícia é “o esquadrão da morte oficial” que “age acima da razão”, como um território imperialista, invasor, a mando da linha dura, que só admite a supressão.  Na cidade vivemos apavorados com esse destempero dos direitos básicos; assim, um território é manchado pela violência de outro.

Sendo a polícia um poder executivo assolado pela corrupção, a cidade do Rio de Janeiro é, na composição conceitual do Planet Hemp, a “cidade desespero”. Um território existe, sobrevive e se constrói em detrimento de outro. A riqueza de um Rio pisando a pobreza de um Rio, mas agindo assim, à revelia, protegida pela polícia. A lei não protege. Ela justifica o massacre para blindar “uma minoria rica da maioria pobre que paga com a vida”, ainda que honesto seja. Não importa quem e como pensa o território oprimido. Importa livrar-se dele perseguindo, forjando flagrantes, prendendo, batendo; importa anular “o favelado, o paraíba, o negão”.

Territórios oprimidos reagem, no entanto. O Rio problemático e libertário atravessa o morro e o asfalto para tornar expressiva a máscara de um pensamento antes excluído, proibido, envergonhado. O “quarto de despejo” abre suas janelas e portas e deixa a brisa sair. Planet Hemp nos mostra isso com o pensamento canábico implícito e explícito na sua poética. A fuga que a linha móvel traça na cidade é uma linha espiralada que serpenteia o ar, uma nuvem de fumaça espessa e aromatizada; e, por isso, esse pensamento é fluido, vaporoso, envolvente. O Rio de Planet Hemp pensa livre, natural, “faz a cabeça”: fuma maconha, diamba, ganja.

O sujeito, que não é mais sujeito, e sim território pensante, faz a cabeça e mantém o respeito; ele não o faz tão-somente por alienação ou libertinagem; o faz por expansão territorial, já que pensar é conectar-se a esse horizonte de acontecimentos, a esse espaço total, que é a terra. A maconha expande; não inspira ações opressivas ou supressivas; não exclui nem reprime. Em Planet Hemp ela é matriz intelectual de uma terra: ela quem “faz pensar e enxergar além”. Expandindo territórios, jogando “fumaça pro alto”, Planet desterritorializa a opressão da linha dura e converte o território pensante para outro ponto da terra, reconfigurando modos de viver.

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1 COMENTÁRIO

  1. Pensar as diferenças não é alucinar-se, mas manter muito claro nos sentidos a indiferença a uns e a reverência a outros, por puro preconceito, por pura ignorância.
    A alucinação, junto com a vaidade, não passam de subterfúgios, uma forma simplória de tentar em vão eternizar-se, diante da grande angústia do homem, a morte.
    Na alucinação não há medo, mas a fuga momentânea, seguida da escravização ao vício e o aumento de neuroses.
    Agora, viciado em não encarar a própria vida, sem este mundo colorido artificialmente, além do medo, agora coexiste a revolta pela covardia e pela sujeição.
    As neuroses fazem esquecer a angústia maior do homem, mas não a impedem…
    A alucinação aliena tal angústia, e dane-se a tal da morte, assim como se dane a própria vida.
    Filosofar com clareza pode ajudar ao homem a ver a si mesmo e ao outro, mas para isto é preciso amadurecer… Estar só, pobre e nu, sem vexames, sem vergonha de ENCARAR, sem armas contra o medo…

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