Valentim, o mestre

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É inegável que a cidade do Rio de Janeiro seja um espetáculo à parte em sua ostensão de beleza. Tantas canções foram feitas em homenagem a esse notável aspecto estético. Como esquecer de “Rio em flor de Janeiro”, poema singelo de Drummond de Andrade? Como esquecer desse Rio que “virou flor nas praças, nos jardins dos edifícios”? No olhar do poeta, o Rio é a cidade que se transformou em uma “soberba flor por sobre todas” e que quando “a gente passa, a gente olha, a gente para” não há alternativa: “a gente se extasia”. Somos tentados pela sedução dessa flor em forma de cidade, mas há outro ponto que é tão interessante quanto esse. O Rio não só virou a flor na praça e no jardim. Mas – veja só – o jardim e a praça tomaram a forma de uma flor.

Essa metamorfose urbana se deu mais precisamente na segunda metade do século 18 com o movimento reformista do governo de inspiração iluminista de Marquês de Pombal. Antes disso, o Rio vivia dominado pelo jesuitismo, mas também se achava em estado virginal, era a urbe em broto, uma semente prestes a explodir em formas. Antes de imperar sobre todas as flores, a cidade – que naquela época verteu-se em capital do vice-reinado, depois da transferência de Salvador – passou pelo significativo trabalho do escultor, entalhador, arquiteto, paisagista e urbanista Mestre Valentim.

Natural da cidade de Cerro, Minas Gerais, o negro Valentim da Fonseca e Silva (ca.1745-1813) era filho de português contratador de diamantes e de uma escrava forra. Junto do pai, ainda na infância, foi morar em Portugal para tentar escapar do sistema racista e classista do Brasil colonial. O pai sabia que, naquelas condições, o filho não teria espaço na sociedade a não ser como escravo. Formou-se na Europa e depois retornou ao Brasil, já homem feito. Não tardou muito e Valentim dava sinais de seu talento como artista, passando a receber uma série de importantes encomendas.

Deveras o Rio de Janeiro colonial floresceu na segunda metade do século 18. A cidade respirava certo ar caótico do mais primitivo colonialismo. Urbanisticamente mal distribuída e mal aplainada, a cidade precisou ser aterrada,onde era a antiga Lagoa do Boqueirão e alguns dos trechos pantanosos, evitando alagamentos e vários problemas de insalubridade; como também foi alargada para dar conta das demandas e do contingente demográfico daquela que era o centro de referências culturais do Brasil. Valentim soube tirar bom proveito dessas condições, que lhe foram propícias enquanto artista. Delegaram-lhe, assim, a tarefa de solucionar a crise de saneamento das ruas, bem como a crise de distribuição de água, além de embelezar e de urbanizar a capital.

Valentim conseguiu esse encargo, não somente graças ao seu talento, mas também porque foi reconhecido por ninguém menos do que o próprio vice-rei Dom Luís de Vasconcelos e Sousa. Antes de seu nome brilhar na sociedade, o negro Valentim trabalhava quieto, escondido dentro da igreja. Ali, na Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte Carmo, junto de Luiz da Fonseca Rosa, Valentim desenvolveu seu ofício de entalhador. Entre os anos de 1772 e 1780 ficou responsável pela recuperação do interior da igreja; o que levou o artista, pouco a pouco, com todo aquele vagar artesanal de cortar madeira e metal, a ser notado e a desenvolver uma incrível habilidade de artista.

passeio Valentim, o mestre

Na Ordem Terceira, situada na Rua Primeiro de Março, Valentim entalhou sua melhor obra: seu talento para os interiores. As mãos do negro confeccionaram as mais belas imagens que preenchem a esplêndida igreja dos carmelitas. Abóbodas, colunas, balaustradas, camarotes, guirlandas, lampadários e arcos são elementos arquitetônicos impregnados da estética do estilo Rococó. Seguindo a tendência da época, ainda que tardiamente, Valentim mantinha-se conectado espiritualmente àquela França pré-revolucionária de Watteau e Fragonard, onde o Rococó ganhou sua expressividade máxima. Valentim imprimiu seu toque de Midas, transformando nosso Rococó em ouro de magnânimo quilate, fundindo iconografias do sagrado cristão com paganismo grego.

 Valentim tinha a riqueza de um entalhador que faz milagres na superfície da madeira e do metal; entendia como ninguém do jogo de formas necessário para tornar o interior do ambiente uma floração de texturas vivas, um ritmo incansável de volutas e de ornatos, brilhosos em sua folhagem de ouro. Sim! São flores artificiais que vemos pipocar aqui e ali no interior da igreja que tantos noivos hoje sonham em casar. Valentim sabia como encantar, como despertar o espírito de alegria e de rejuvenescimento, como um bom artista Rococó, apenas ligado ao que de lívido e de supérfluo a vida oferece.

No espaço externo, Valentim é mestre também; mas de modo neoclássico. Nem bem terminou a grande ourivesaria do interior da igreja do Carmo, já se ocupava de sua mais emblemática obra: o jardim Passeio Público. A finalidade dessa obra era alinhar o traçado da cidade unindo o Centro à Baia de Guanabara, mas principalmente aproveitar terrenos miasmáticos. O desejo do vice-rei era uma ordem. A modernidade urgia. O vice-rei viu em Valentim as mãos ideais para dar vida aquele projeto. Valentim, por sua vez, viu a chance de mostrar outra carta na manga de seu virtuosismo. Iniciou, em 1779, a obra do Passeio, o primeiro espaço público da América com vistas ao lazer.

capela 1 Valentim, o mestre

O Passeio Público representou o marco de um legado na arquitetura, no urbanismo e na escultura do Brasil. A técnica de Valentim, bastante familiarizada no entalhe de vigas de metal, tornou-se signo definitivo de seu estilo incomparável. A mistura no uso de materiais como o metal e a pedra deram o aspecto absolutamente original e moderno, algo que poucos anos depois se veria na Paris de Eiffel. O projeto de Valentim era construir um espaço que tivesse algo do espírito arejado do Jardim de Versailles, que celebrasse a natureza como protagonista. Superando os modelos do colonialismo cristão, essa não era “mais uma obra”; mas a obra, neoclássica, que tornaria o urbanismo o namoro entre a utilidade social e a experiência estética, entre a necessidade vital da cidade por ordem e a liberdade vital do cidadão de gozar da beleza.

Não era à toa que aquele ambiente acolhedor, preenchido por chafarizes, por vegetações típicas da flora nativa, por esculturas de bronze, era badalado por brasileiros pelos visitantes estrangeiros. Com uma das entradas do parque descortinando as margens da Baía de Guanabara, quando ainda era povoada por botos e baleias brancas, era irresistível quedar-se ali, desocupado, sentindo a maresia, contemplando a quietude das plantas, a luminosidade do sol, a beleza dos adornos. O Passeio era o Éden urbano feito para sestas, prosas, encontros amorosos e o borbulhar da imaginação machadiana. Eis a maestria poética de Valentim: fazer um Rio desabrochar como flor de Janeiro.

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