1. O que é fraude à execução?
Imagine que você está sendo processado judicialmente. Durante esse processo, você decide vender um imóvel ou fazer uma doação desse bem a um familiar. Depois disso, o juiz determina que você deve pagar uma dívida, mas o imóvel que poderia ser usado para garantir o pagamento já foi transferido. Essa situação pode ser considerada fraude à execução.
A fraude à execução ocorre quando alguém, já sendo parte de um processo que pode resultar em condenação patrimonial, transfere bens para evitar que eles sejam usados para pagar a dívida. Trata-se de um comportamento que pode prejudicar o credor e impedir a efetividade da Justiça.
Mas o tema não é tão simples assim. A grande pergunta é: em que momento a transferência de um imóvel passa a ser considerada fraude? E é aí que entra a polêmica.
2. Precisa haver penhora registrada para ser fraude? Duas decisões, duas respostas
Nos últimos meses, decisões relevantes de tribunais superiores chamaram a atenção por tratarem de maneira diferente situações bastante semelhantes — envolvendo a transferência de imóveis durante o curso de processos judiciais.
No primeiro caso, a Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu que basta a existência de um processo judicial em curso contra o devedor para configurar a fraude à execução, mesmo que o imóvel ainda não estivesse penhorado oficialmente no cartório (EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RESP Nº 1896456 – SP – 2020/0245182- 0). Ou seja, mesmo sem registro da penhora, a doação de um imóvel ao filho foi considerada fraude, pois havia risco evidente de prejuízo ao credor.
Já no segundo caso, analisado pela Primeira Turma do Tribunal Superior do Trabalho (TST), o entendimento foi mais protetivo ao terceiro adquirente. A Turma decidiu que não se pode presumir a má-fé de quem adquire um imóvel sem que haja penhora registrada na matrícula do bem (PROCESSO Nº TST-RR-10871-09.2018.5.15.0134). Assim, para o TST, a ausência do registro da penhora inviabiliza a alegação de fraude à execução em relação a terceiros que agiram de boa-fé.
Essas decisões mostram uma divergência importante entre tribunais superiores — o que confunde os cidadãos e gera insegurança jurídica.
3. Doação x Venda: situações diferentes, mesma dúvida
Muita gente acredita que doar um imóvel para um filho, por exemplo, é algo pessoal, que não tem relação com dívidas. Já outros pensam que vender um imóvel, desde que por um valor justo, também seria uma proteção válida.
Mas atenção: tanto a doação quanto a venda de imóveis podem ser anuladas pela Justiça se forem feitas com o objetivo de fraudar credores ou esvaziar o patrimônio do devedor em meio a uma ação judicial.
Nos casos analisados pelo STJ e pelo TST, os bens foram transferidos durante o curso de processos que buscavam cobrar dívidas. Mesmo que a transferência parecesse legal, o contexto gerou questionamentos sobre a intenção real do vendedor ou doador.
4. A boa-fé do comprador ou beneficiário importa?
Sim. O Código de Processo Civil determina que a fraude à execução só pode ser reconhecida se o terceiro que recebeu o bem (por compra, herança ou doação) não tiver agido de boa-fé.
A boa-fé significa que o comprador ou o donatário não sabia — e não tinha como saber — que o imóvel estava envolvido em um processo judicial que poderia resultar em penhora.
Mas como saber isso?
- Verificar certidões negativas de débito;
- Consultar a matrícula atualizada do imóvel no cartório de registro;
- Pesquisar processos em nome do vendedor;
- Fazer uma due diligence imobiliária com auxílio jurídico.
Se o terceiro não tomar essas precauções, a Justiça pode entender que ele assumiu o risco de estar participando de uma fraude.
5. Registro da penhora: por que ele é importante?
O registro da penhora na matrícula do imóvel é um marco jurídico relevante. Ele dá publicidade ao processo judicial e coloca o mundo em aviso de que aquele bem está vinculado a uma dívida.
Para o STJ, a simples existência de uma ação judicial capaz de levar à penhora do bem já é suficiente para configurar a fraude à execução, mesmo que não haja penhora formalmente registrada na matrícula do imóvel.
Entretanto para o TST, não se presume a fraude à execução se não houver penhora regularmente averbada na matrícula do imóvel. O terceiro adquirente, que agiu de boa-fé, não pode ser prejudicado pela ausência de registro público da constrição.
6. Como a Justiça analisa esses casos?
Ao julgar se houve ou não fraude à execução, os juízes analisam, geralmente:
- Se havia processo judicial em curso com potencial condenação patrimonial;
- Se o imóvel foi transferido depois do início do processo;
- Se a penhora estava registrada na matrícula do imóvel;
- Se o terceiro que recebeu o bem agiu com boa-fé;
- Se houve indícios de simulação, ocultação de patrimônio ou intenção dolosa.
O conjunto desses fatores leva o juiz a concluir se a transferência foi legítima ou se, na verdade, foi uma manobra para driblar a Justiça.
7. Posso vender ou doar meu imóvel mesmo respondendo a um processo?
Tecnicamente, sim. A lei brasileira não proíbe a venda ou a doação de imóveis por pessoas que respondem a processos judiciais.
Mas isso não significa que a operação será válida em qualquer circunstância. A depender do contexto e da existência de dívidas, a Justiça pode anular a transferência, declarando-a ineficaz em relação ao credor.
A recomendação é clara: se você está sendo processado e pretende transferir um imóvel, procure orientação jurídica especializada antes de agir. Isso pode evitar problemas maiores no futuro — inclusive a perda do bem ou a responsabilização por má-fé.
8. E se o imóvel estiver no nome de outra pessoa?
Outra prática comum é colocar bens no nome de familiares ou terceiros — o famoso “laranja”.
Se for provado que a transferência foi feita com intenção de ocultar patrimônio ou prejudicar credores, a Justiça pode desconsiderar a personalidade jurídica ou anular a operação, atingindo os bens onde quer que estejam.
9. O que aprendemos com as decisões recentes do STJ e do TST?
As duas decisões analisadas neste artigo mostram que o tema da fraude à execução ainda está em debate nos tribunais superiores. A divergência entre os Tribunais Superiores indica a necessidade de se uniformizar a interpretação.
Enquanto isso não acontece, os cidadãos devem agir com cautela. O simples fato de não haver penhora registrada não garante que a operação esteja protegida de questionamentos judiciais.
10. Conclusão: o cuidado nunca é demais
Vender ou doar um imóvel é uma decisão importante — e quando há um processo judicial envolvido, a atenção deve ser redobrada.
Ao final, o recado é simples: transparência, cautela e informação são as melhores formas de proteger seu patrimônio e evitar dores de cabeça na Justiça.