A criação artística é dotada de um poder particular que a torna uma espécie de transporte, de veículo que produz deslocamentos voltaicos, em que energias são vazadas de dentro para fora e de fora para dentro. Já havia dito em outro artigo que a arte é uma vazante de forças; no que, inevitavelmente, fará do artista um cais cuja função é deixar a caravela fluir no mar da vida, como também abrir seu porto para a chegada daquele que partiu. É um verdadeiro trânsito o trabalho de criação; a arte sai de dentro do artista vazando para fora; e de fora retorna ao cais depois de efetuada longa ou curta viagem até o seu destino: o público.
O paulista Mauricio de Souza deixou a caravela partir em direção ao público sem sequer imaginar que quando retornasse traria consigo um baú repleto de ouro, como ocorre nas aventuras literárias. Quando se mudou de Santa Isabel, sua cidade natal, para Mogi das Cruzes para iniciar sua vida profissional como cartunista; e dali, depois, aos 19 anos, para a grande São Paulo, onde trabalhou como redator e como repórter policial, no jornal Folha da Manhã e para a Folha da Tarde, como cartunista, Maurício estava pronto para zarpar e atravessar o Brasil, com suas tirinhas e seus personagens inconfundíveis. Só não sabia que sua criação se multiplicaria tanto e que atingiria a enormidade de um cosmos privado: o Universo–Maulício.
Desde criança esbanjando manejo para o desenho, Maurício deu preferência à técnica e ao estilo do cartum. Por definição, o cartum é a modalidade de desenho humorístico que, com traços simplificados, arredondados e precisos ocupa-se em abordar a vida cotidiana através de quadros sequenciados (as tirinhas) que tiram proveito das situações para expor uma visão crítica da sociedade. Animado nas telas do cinema ou da TV ou simplesmente planificado no papel, o cartum exerce a função crítica de forma sarcástica e debochada, como forma de transmitir um conteúdo que atinja não só o público adulto, como também o público infantil.
Maurício tomou partido das crianças. Por isso, em 1959, no Folha da Manhã, iniciou a jornada de sua caravela: as histórias em quadrinhos. Munido dos instrumentos clássicos do cartunista, o nanquim e o papel, Maurício deu vida aos seus primeiros personagens; foi aí que nasceram Bidu e Franjinha. Mas as imagens de humor não vieram de graça, por qualquer inspiração ou capricho do artista. Bidu e Franjinha são transfigurações lúdicas da vida do artista Maurício; são vazantes que transbordam a experiência do menino que, ao ver seu primeiro gibi (“Joca Marvel”), encontrado numa lata de lixo,se apaixonou pelos quadrinhos; são memórias afetivas de alguém que não pôde conter a vida dentro de si e quis recompor em forma de arte.
O universo-Maulício não cria personagens; ele cria histórias; seus personagens são, na verdade, recomposições da vida, “blocos de sensações” (expressão deleuziana-guattariana que aprecio e gosto sempre de me reportar) de um empirista gráfico. Em entrevista ao Cartoon Network, Mauricio revela: “um personagem, para você criar bem, para ele ser uma figura forte, tem que se parecer com gente que você conheça”. O “truquezinho” ou “chave da sabedoria”, como ele diz, foi observar “quem que eu conhecia bem” e como “faria para criar um personagem baseado naquela pessoa”. Desse modo nasceram Bidu, o cachorrinho de estimação que ele teve na infância; e Franjinha, o próprio Maurício-criança, o Maurício-inventor, o cientista do humor.
Anos depois, os personagens principais se ampliaram por uma demanda do mercado. Havia a necessidade de que houvesse um acréscimo, contando com a ausência das meninas. Só haviam meninos até então. As histórias precisavam do toque feminino. Mais uma vez Maurício recorreu à experiência pessoal para conceber imagens de humor. Foi aí que, contemplando suas filhas Mônica, Magali e Mariângela (Maurício mantinha estúdio em casa) brincarem ou comerem, criou, na década de 60, a turma da Mônica que, sem demora, agregou inúmeros amigos.
Mônica é a menina-líder da turma. Na infância, a filha de Maurício apresentava os mesmos traços fisionômicos que os do personagem: era baixinha, dotada de muitos cabelos, dentuça e nutria um apego carinhoso por um coelhinho de pelúcia amarelo (na história, o coelho se chama Sansão e é azul). O traço psicológico do personagem marcante é a agressividade; que Maurício, em sua observação de cientista e narrador, extraiu a partir do conflito entre Mônica e Magali, quando aquela, com o coelho em riste, apontava para Magali, em outro extremo da sala, mirando na irmã que se refestelava sozinha comendo uma melancia. Já se via aí a Mônica de pavio curto, a menina explosiva, dotada de força incomum. Ao mesmo tempo que, em um único episódio familiar, Maurício recompunha a gula, a meiguice e a simpatia da filha Magali.
Cebolinha é o menino-líder da turma que se contrapõe em força e em inteligência à Mônica. Surgiu no imaginário da obra de Maurício como experiência de outra criança: Luiz Carlos da Cruz, o vizinho mirim do pai de Maurício, o senhor Antônio. Luiz era tal qual Cebolinha: menino de cabelos ralos e vítima de dislalia (câmbio do “r” pelo “l”). Na “nalativa”“humolística” de “Maulício”, Cebolinha é mandão, egoísta, “plovocador” da “ila” de Mônica, “ladlão” do Sansão e disputa sagacidade com “Flanjinha”. Em suas histórias, o personagem Louco aparece apenas para ele, como se também, além de folgado, Cebolinha tivesse visões alucinadas.
Cascão é outro menino da faixa etária de Mônica, Magali e Cebolinha: todos têm sete anos. Também vizinho de Maurício, Cássio, o menino que inspirou o personagem, devido à pobreza da família, andava sujo pelo bairro; e, quando tomava banho, somente aos domingos, usava sebo de vaca, banha de porco e cinza de lenha, cujos odores fortes causavam repulsa nas pessoas. Nas historinhas, Cascão sofre de hidrofobia e é ameaçado por qualquer sinal de água.
Além de não criar personagens, mas recompô-los, Maurício também não faz do cartum uma crítica ácida da sociedade. O universo-Maulício nos permite rir, mas daquilo que a sociedade tenta corroer; ele próprio não é crítico. Ao contrário, produz o riso em cima do que queremos suprimir ou ocultar; é uma crítica lúdica, sutil, porém pertinaz. A criança, em suas histórias, encarna um indivíduo afirmativo, que o mundo, por preconceito, considera imperfeito, feio, ruim, inacabado ou inapropriado. Por trás de feições cativantes, Maurício reafirma a existência da menina gorda e disfuncional, da menina glutona, do menino pobre, sem higiene, do menino louco, com dislalia, do menino brejeiro, caipira, da menina com síndrome de Down.
Não é só a infância, nas suas diferenças afirmativas, que é pintada, mas um Brasil de pequenas gentes,ilustrado em cores puras, saturadas e brilhantes. O universo-Maulício está longe da opaca vida dos quadrinhos da Disney; é um quadrinho quente, iluminado e tropical. Plasticamente a cor apresenta paleta vibrante e um cenário limpo e minimalista, diferente da poluição visual presente na turma do Mickey. Dentro desse espaço, os meninos vivem seus dramas, quer dizer, seus conflitos, a partir do que sofrem com suas “falhas” físicas e psíquicas. O riso surge dessa lacuna, dessa falta: é o próprio Maurício quem ri de nós, em sua arte.
Além de tudo, Maurícionos alfabetizou. De minha parte aprendi com ele não só a ler por imagens, como a desenhar. À distância, ele me instruiu; cada gibi ou almanaque de férias era a escola de arte que falta ao menino pobre. Quando Maurício partir despedindo-se de nós, restará em cada criança o ouro que ele descobriu em terras já muito navegadas; restará a criança interior, esse sol que nunca se põe no coração de quem ainda tem muito o que viver e narrar.