William Bittar: A Matriz de Nossa Senhora da Glória do Largo do Machado

Em 15 de agosto celebra-se o dia de Nossa Senhora da Glória, cuja devoção no Rio de Janeiro teria surgido, segundo a tradição, nos primeiros anos do século XVII

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Bilhete Postal - Reprodução

Em 15 de agosto celebra-se o dia de Nossa Senhora da Glória, cuja devoção no Rio de Janeiro teria surgido, segundo a tradição, nos primeiros anos do século XVII quando um morador colocou uma imagem da Virgem numa gruta, na encosta de um outeiro, próximo ao mar, no prolongamento da Praia do Flamengo.

Mais de um século depois, sobre aquele morro construiu-se a igreja de Nossa Senhora da Glória do Outeiro, um relevante exemplar do barroco na arquitetura religiosa nacional.

Ao longo do tempo, a devoção recebeu treze locais de culto distribuídos por toda cidade, entre eles três paróquias localizadas em Santa Cruz, Cordovil, ambas instituídas no final do século XX, e Laranjeiras, esta última um notável exemplar de filiação neoclássica, localizado no Largo do Machado, construído para abrigar a matriz da nova freguesia, instituída em 1834.

Segundo a CNBB, a história da celebração tem origem nas decisões do Concílio de Éfeso, em 431, que proclamou Maria “Mãe de Deus”, ratificada pelo dogma da igreja católica proclamado pelo Papa Pio XII, em 1950, que declarava: “Maria, Mãe Imaculada perpetuamente Virgem de Deus, após a conclusão da sua vida terrena, foi assunta em corpo e alma à glória dos Céus”, recebida após sua dormição, tornando-se Rainha do Céu e da Terra, celebrado na Festa de Assunção de Nossa Senhora, a cada dia 15 de agosto.

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Em Portugal, o culto foi definitivamente consagrado pelo Rei D. Pedro I, o mesmo que desposou D. Inês de Castro, numa trágica história de amor. Segundo a tradição, Nossa Senhora apareceu ao rei durante suas caçadas, cercada de luzes e resplendores, salvando-o de um ataque de um animal desconhecido e afogamento na região que passou a ser denominada Glória do Ribatejo, em Portugal, a 80 km de Lisboa, em meados do século XIV. Em agradecimento à graça concedida, D. Pedro construiu uma capela em devoção a Nossa Senhora da Glória.

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No Brasil, esse culto integra o patrimônio religioso nacional, contando com uma ermida construída para Nossa Senhora em Porto Seguro, nos primeiros anos da colonização.

Com a chegada dos povos africanos, houve o progresso gradativo do sincretismo religioso e Nossa Senhora da Glória, assim como outras devoções a Maria, foi associada a Iemanjá, a Grande Mãe, que traz na cabeça a coroa estrelada, acolhendo seus filhos na vida e na morte, regendo sobre a energia do mar, a calunga grande, denominação utilizada principalmente pelo povo banto, que se estendeu aos demais cultos afros.

Devoção católica, também presente nos terreiros de umbanda ou candomblé, o culto se difundiu por toda a colônia, com a criação de muitas paróquias e até mesmo vilas com esta denominação.

A cidade do Rio de Janeiro contava com um templo dedicado a Nossa Senhora da Glória desde meados do século XVIII, implantando em um outeiro à beira-mar, porém sem a constituição de paróquia.

Durante o período regencial, houve um considerável crescimento nas freguesias da cidade, dificultando a administração política e religiosa. Para atender à população daquela região sul, um decreto imperial criou, em 1834, a freguesia de Nossa Senhora da Glória, através do desmembramento de outra maior e mais antiga, São José, que compreendia uma área muito abrangente, chegando até a Gávea.

Com a criação da nova freguesia, tornava-se urgente a construção de uma igreja para se constituir a sede paroquial. Provisoriamente, a Irmandade do Santíssimo Sacramento de Nossa Senhora da Glória, criada em 1835, assentou sua sede numa capela particular de Nossa Senhora dos Prazeres, na propriedade de Antônio Joaquim Velasco, onde a paróquia iniciou seus serviços religiosos.

No final daquele ano, a Irmandade adquiriu uma antiga capela situada no início da rua das Laranjeiras, originalmente frequentada por Dona Carlota Joaquina, que fora objeto de demanda judicial. Foram realizadas algumas obras para receber as imagens e a sede da Irmandade, transladadas com ostentosa procissão que contou com a presença do próprio Imperador D. Pedro II, com dez anos de idade, acompanhado das irmãs e outros integrantes da Corte, incluindo o regente Diogo Feijó.

Ainda que próprio, o templo era diminuto e modesto para o status e número crescente de fiéis, necessitando ampliação ou construção de um novo edifício, providência iniciada com a aquisição de um terreno junto ao Largo do Machado, concretizada em 1838, desde que não houvesse sepultamentos no interior da nova igreja, por exigência do proprietário original.

Em 17 de julho de 1842 foi lançada a pedra fundamental da futura matriz, com a presença do Imperador D. Pedro II, nomeado Provedor Perpétuo da Irmandade. As obras foram iniciadas, atendendo ao projeto desenvolvido pelos engenheiros Julius Koeler e Garçon Rivière, provavelmente inspirado na igreja anglicana inglesa, dedicada a São Martinho de Tours (St. Martin-in-the-Fields), projetada por James Gibbs, entre 1722 e 1726, adotando um repertório neoclássico.

Em 1856, com obras muito lentas, foram concluídas as paredes da capela-mor e acomodações provisórias para dois altares, permitindo o translado das imagens originais para o ambiente ainda em construção.

A inauguração da matriz ocorreu trinta anos após o lançamento da pedra fundamental, em 6 de outubro de 1872, com a realização de grandes festas pelos fiéis, que mais uma vez contou com a presença do Imperador D. Pedro II.

A fachada principal, com clara associação à igreja inglesa de São Martinho, contava com escadaria monumental que levava ao pórtico delimitado por oito colunas monolíticas de granito, material sugerido por José Clemente Pereira, com cerca de 2m de diâmetro e 10m de altura, arrematadas por capitel jônico, suportando um frontão triangular com tímpano ornado com a coroação da Virgem, painel em relevo do artista espanhol Francisco Mutido.

Igreja Anglicana de St. Martin-in-the-Fields, Londres (esq. bilhete postal) e Matriz de Nossa Senhora da Glória ( dir. A. Malta / BN)

Atrás do pórtico de entrada erguia-se uma torre com cerca de 50m de altura, concluída em 1875, provida com um terraço balaustrado onde assentavam-se quatro estátuas: religião, fé, esperança e caridade. Deste terraço subia um corpo escalonado que recebia os sinos, sob uma agulha.

A execução da torre chegou a gerar algumas polêmicas, como registrava Machado de Assis em seu Memorial de Aires, que alguns defenderam como necessária, pois a fachada em nada lembrava uma igreja católica.

Internamente, considerando-se o longo tempo de obras, o edifício não apresentava unidade ou representatividade artística. A ornamentação sugeria uma influência tardia do rococó, contraposta ao neoclassicismo presente na fachada. Além disso, não houve cuidado maior nas relações de proporção, gerando um ambiente pouco atrativo devido à escala monumental sem elementos harmonizadores, como o atarracado arco do coro.

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Interior da Matriz de Nossa Senhora da Glória Reprodução

Entre outros ambientes, o templo contava com uma ampla sacristia e um pequeno chafariz de mármore. Sobre ela, estava o consistório para a realização das reuniões da Irmandade.

Eis aqui a Matriz de Nossa Senhora da Glória no Largo do Machado, bem cultural tombado pelo município e pelo estado no final do século XX para preservar a memória religiosa, artística, cultural e a criação de uma nova freguesia.

Dia 15 de agosto, enquanto a comunidade católica celebra Nossa Senhora da Glória e sua Assunção, os terreiros saúdam Iemanjá, Rainha do Mar que, assim como Nossa Senhora, também conta com outras datas para celebração.

São crenças poderosas presentes e herdadas do amálgama cultural da formação do povo brasileiro que reza a Ave Maria no Angelus das dezoito horas, mas também se aproxima da beira-mar com flores para saudar aquela energia elementar: Odoyá!

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Carioca, arquiteto graduado pela FAU-UFRJ, professor, incluindo a FAU-UFRJ, no Departamento de História e Teoria. Autor de pesquisas e projetos de restauração e revitalização do patrimônio cultural. . Consultor, palestrante, coautor de vários livros, além de diversos artigos e entrevistas em periódicos e participação regular em congressos e seminários sobre Patrimônio Cultural e Arquitetura no Brasil.
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