William Bittar – A Popular Festa da Penha na cidade do Rio de Janeiro (parte 2): as festividades

Conta a tradição que a festa fora instituída pelo rei D. João VI, em setembro de 1816, ratificando a presença de fiéis em romaria desde meados do século XVII

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Revista da Semana, 1932. Desenho de Alberto Lima

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Se uma lágrima me rola e o pranto eu não contenha
Choro nas escadarias de Nossa Senhora da Penha

Roberto e Erasmo Carlos

Em 16 de junho de 2016, o Santuário Arquidiocesano Mariano de Nossa Senhora da Penha foi elevado à categoria de Basílica Menor, conforme registrado em coluna anterior nesse jornal.

Trata-se do reconhecimento da importância desse conjunto religioso, também reconhecido como patrimônio cultural do município do Rio de Janeiro, através do decreto de tombamento nº 9.413, promulgado em 1990.

Cenário de uma das mais importantes celebrações religiosas, a Festa da Penha, mesmo sem reconhecimento oficial como Patrimônio Imaterial, é uma das maiores festividades populares da cidade do Rio de Janeiro e já foi considerada tão importante quanto o Carnaval, ao qual agregava-se através das rodas de samba e lançamento de músicas para o ano seguinte.

Entre o final de setembro e o primeiro domingo de novembro, popularmente conhecido como o dia dos barraqueiros, junto ao largo da Penha, onde está o portão de acesso ao santuário, distribuem-se as barracas na vizinhança imediata do Parque Shangai. Ali, atestando a importância do evento, aconteceu o primeiro concurso de músicas carnavalescas, em outubro de 1917. Era a fusão entre o divino e o profano.

Conta a tradição que a festa fora instituída pelo rei D. João VI, em setembro de 1816, ratificando a presença de fiéis em romaria desde meados do século XVII, mas foi no final dos oitocentos, com a expansão da malha ferroviária da cidade, que consolidou sua importância no calendário religioso carioca, conforme registrava a imprensa local.

 O jornal O Paiz, de outubro de 1897, registrava que “antes dos comboios da Estrada de Ferro eram 50.000 os devotos, hoje não fica mentiroso quem os calcula em 120.000.” No ano seguinte, o Jornal do Commercio noticiava que “desde manhã cedo, avultada massa de povo afluiu às estações da Estrada de Ferro Central e do Norte, onde os trens se sucederam literalmente carregados transportando a multidão de fiéis em demanda da tradicional festa.”

Certamente, devido à grande distância do santuário e o tempo de viagem, surgiram as barracas para vender alimentos, bebidas, artesanato, provocando aglomerações, roda de samba, numa geografia própria que colocava as atividades mundanas na várzea, junto à base do penhasco, enquanto o sagrado se manifestava a partir do primeiro patamar, de onde se eleva a pétrea e colossal escadaria.

 Esta convivência pacífica não era apreciada por todos. Alguns conservadores expressavam sua rejeição por aquela fusão espontânea, sugerindo a proibição daquela explosão “escandalosa e selvagem”, como se referia o poeta Olavo Bilac. Outros, mais tolerantes, sugeriam exercer algum tipo de controle para evitar excessos daquela “orgia popular”.

 Afinal, junto às barracas, promoviam concurso de marchas, festivais populares de danças, rodas de batuque. Ali se bebia, comia, apostava, jogavam cartas, vispora, tiro ao alvo, argolas, exibiam-se os capoeiras, uma síntese de manifestações consideradas pagãs.

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Festa da Penha – Revista O Malho, 1910.

Mesmo após a Abolição, em 1888, reproduzia-se ali relação da casa grande e senzala. Enquanto os “homens brancos de bem”, trajando seus ternos de linho, acompanhados de suas famílias, dirigiam-se contritos ao santuário, ex-cativos, alforriados, permaneciam na várzea, festejando à sua maneira, ou agindo como os antigos escravos de ganho, trabalhando nas barracas montadas pelos senhores.

Muitos ali desfrutavam da sua liberdade de culto e manifestações populares, como as baianas de Tia Ciata, que frequentou as festas até sua morte, em 1924, reproduzindo as atividades da Pequena África, incluindo a presença de sambistas, como Ismael Silva, Sinhô ou Heitor dos Prazeres; ou artistas consagrados, como os Oito Batutas, com Donga e Pixinguinha, este morador de Ramos, bairro localizado a duas estações de trem.

Segundo a Professora Neusa Fernandes, na obra Cantos e Encantos do Rio, foi na Festa da Penha que Candeia conheceu Nelson Cavaquinho, Noca da Portela iniciou sua amizade com Paulinho da Viola, além da presença de outras ilustres personalidades do mundo do samba, como Cartola, Moreira da Silva, Zé Kéti, Mano Décio, Carmen Costa, Jamelão.

Ao longo do século XX, desenvolveu-se um sincretismo cultural-religioso. Tornou-se comum a frequência de ambos os espaços pelos diversos grupos sociais envolvidos. Todos eram atores com múltiplos personagens: devotos penitentes, muitos deles subindo os degraus de pedra de joelhos, com velas ou ex-votos nas mãos, para depositar junto ao altar. Retornavam das missas, promessas quitadas, sentavam-se nos gramados em piqueniques familiares, nas cadeiras dos bares, participando das rodas de samba ou das pistas de forró. Outros, num caminho inverso, deixavam temporariamente as barracas e seguiam pelas ladeiras e escadaria, pedindo a proteção de Nossa Senhora, voltando aos folguedos que varavam as madrugadas suburbanas.

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Entrada do Santuário da Penha – Revista O Cruzeiro, 1948

 A partir da década de 1960, a várzea junto ao acesso principal, no sopé do penhasco, foi ocupada pelo Parque Shangai, espaço tradicional de lazer da zona leopoldinense, objeto de coluna do dia 07 de abril de 2022. Quase imediatamente se agregou ao ambiente da festa religiosa, permanecendo lotado, num ir e vir de adultos e crianças disputando brinquedos, algodão doce, pipoca, enquanto os alto-falantes dedicavam músicas encomendadas por admiradores às musas instantâneas.

As últimas décadas do século XX assistiram ao aumento da violência urbana e o fortalecimento do crime organizado, provocando disputas de facções pelo controle de territórios para comércio de drogas.

O complexo da Penha, onde está localizado o santuário, tornou-se cenário para batalhas entre traficantes, invasões pela segurança pública, uma região de constante conflagração, diminuindo a frequência na igreja, no parque e nas festividades de outubro.

É possível afirmar que, mesmo com sucessivas ações policiais, como a ocupação do Alemão e Vila Cruzeiro, ocorridas em novembro de 2010, a sensação de segurança jamais retornou à normalidade, afastando fiéis, visitantes e usuários do parque e do templo.

A pandemia de 2020 contribuiu negativamente para este esvaziamento, assim como ocorreu em tantos outros conjuntos religiosos ou complexos de lazer, ambientes de aglomerações, propícios à disseminação do vírus que vitimou tantos brasileiros.

Considerando o relativo controle da doença, principalmente devido à ação das vacinas, uso de máscaras e isolamento social, apesar do negacionismo oficial, é possível que, pouco a pouco, os fiéis retornem ao templo de Nossa Senhora da Penha.

Para os devotos, é o momento para agradecer por aqueles que se restabeleceram ou não se contaminaram ou ainda dedicar suas preces por quem já partiu, galgando novamente com reverência os degraus esculpidos no penhasco, em mais um outubro, um pouco mais frio e chuvoso do que outros, neste ano de 2022.

Uma conversa com organizadores da festa, há algumas décadas, revelou que a escolha por aquele mês devia-se às poucas chuvas, permitindo uma plena frequência de devotos e visitantes, vistos ao longe, com silhuetas recortadas contra a escadaria, ao sol de primavera, ainda não causticante como no verão. Permitiram-se uma licença litúrgica não oficial, pois o dia consagrado é 12 de abril, como é comemorado no Espírito Santo. No Rio, considerou-se também o dia da padroeira do Brasil, Nossa Senhora de Aparecida, celebrado em 12 de outubro. Como “todas as Nossas Senhoras são a mesma Mãe de Deus”, na canção de Roberto Carlos, as homenagens caminham na mesma direção.

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             Escadaria da Penha: O sagrado e o profano (fonte: Arquivo Nacional)

Que muitos encontrem energia, confiança sobrevindas da fé e retornem pouco a pouco às barracas após as orações. Ali, no sopé do monte, divirtam-se nos brinquedos do parque, desfrutem daqueles refrescos e sorvetes, entre balões coloridos de gás, flutuando sobre as cabeças da multidão, encantando os olhares das crianças.

Sob a proteção de Nossa Senhora lá do alto da Penha, sentem-se nas mesas para apreciar pratos típicos, acompanhados de irrecusáveis aperitivos.

Quem sabe alguém não dedilhe uma viola, se aproxime um cavaquinho, um pandeiro a marcar o ritmo e uma nova roda de samba entoe antigas marchas de outros carnavais, celebrando a chegada de promissoras estações, pois haverá um lagarto entre as pedras da penha a combater outras serpentes que podem surgir.

Encerrando as festividades, a tradicional procissão segue com Nossa Senhora em seu andor, percorrendo as ruas do bairro, irmandades com suas estolas e estandartes, véus cobrindo as cabeças marianas, crianças com seus trajes de anjos, todos em oração, agradecendo, reverenciando a padroeira, caminhando com esperança por tempos melhores que também dependem de nós.

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Carioca, arquiteto graduado pela FAU-UFRJ, professor, incluindo a FAU-UFRJ, no Departamento de História e Teoria. Autor de pesquisas e projetos de restauração e revitalização do patrimônio cultural. . Consultor, palestrante, coautor de vários livros, além de diversos artigos e entrevistas em periódicos e participação regular em congressos e seminários sobre Patrimônio Cultural e Arquitetura no Brasil.
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