A população da cidade do Rio de Janeiro que habita a grande região suburbana convive com um dos mais importantes meios de transporte coletivo: o trem.
O trem, tema de contos, poemas, músicas. Presente no imaginário coletivo com seus múltiplos nomes: maria fumaça, elétrico, direto, parador, expresso, macaquinho, marmitão, japinha. Movido a lenha, a vapor, a diesel, até a eletrificação das vias férreas, “correndo, correndo, parece dizer, tem gente com fome, tem gente com fome”, no poema de Solano Trindade.
Foram os trilhos das ferrovias, associados aos bondes, a partir de meados dos oitocentos, principais responsáveis pela expansão da malha urbana para além do Centro e suas cercanias imediatas. Garantia-se, assim, o acesso às moradias de classes com menor poder aquisitivo, participantes diretas da geração de riquezas daquele modelo capitalista.
No entanto, depoimentos recolhidos por autores como Gilberto Freyre, revelam que os mais abastados se mostraram avessos aos transportes coletivos. Afinal, as cadeirinhas e coches permitiam o transporte individualizado, como os futuros automóveis com seus chauffeurs. Os trens implicavam na presença de diferentes classes num mesmo espaço, um pesadelo para aquelas senhoras da elite, que consideravam imperdoável “misturar gente do povo com pessoas educadas e asseadas”.
Apesar das resistências, a primeira estação ferroviária inaugurada em território brasileiro estava localizada no fundo da baía da Guanabara, na praia de Mauá, no bairro-distrito de Magé.
Iniciou seu funcionamento em 30 de abril de 1854, com ousada proposta intermodal, pois recebia passageiros das barcas a vapor que vinham do porto da Prainha, nas imediações da atual Praça Mauá que ali desembarcavam para ocupar os vagões de passageiros que, em 1883, subiriam a serra para Petrópolis.
Surgiram as estações terminais, de onde partiam os carros para seus ramais, a partir de 1858, o primeiro deles ligando a antiga estação da Aclamação (depois Central do Brasil) a Queimados: Central, Leopoldina, Auxiliar, que atendiam aos bairros do Rio e alguns próximos da Baixada Fluminense.
Ao longo dos trilhos que cortavam a cidade, modestas estações foram construídas, simples paradores, muitos deles marcos de origem da ocupação daqueles bairros distantes. Algumas delas receberam, ao longo das décadas, partidos arquitetônicos diferenciados, destacando-se daquelas construções compostas por volumes retangulares, vazados por poucos vãos, cobertos por telhados em duas águas, coberturas em telhas de barro que se projetavam discretamente sobre as plataformas de embarque.
No contexto carioca, alguns exemplares merecem comentários mais detalhados, muito mais pela sua configuração formal do que pela sua localização na malha ferroviária da cidade e recebem a proteção do tombamento municipal.
Cronologicamente, iniciemos pela antiga estação da Quinta da Boa Vista, também conhecida por Estação Imperial, inaugurada em 1858, início da operação do ramal. É provável sua desativação após a Proclamação da República, que conferiu-lhe outra utilização. A imprensa noticiou sua demolição em 1925, decorrente da necessidade da ampliação do leito ferroviário, mas foi reconstruída nas imediações.
A edificação original apresentava planta quadrangular, com pequeno avarandado cuja cobertura estava apoiada em estrutura metálica. A fachada, com ornamentação simplificada, apresentava elementos em relevo destacando-se da alvenaria pintada em cores mais escuras, provavelmente amarelo. A cobertura em telhas francesas era circundada por uma platibanda balaustrada. A edificação reconstruída foi tombada pelo município em 1996.
Antiga Estação da Quinta.
Revista da Semana, 4 jul. 1925
Seguindo pelo antigo ramal da Central, encontra-se a estação ferroviária da Vila Militar, inaugurada em 1910. Importante parada, pois permitia o acesso ao conjunto composto por quartéis e moradias das tropas da guarnição militar da cidade, que continuam em funcionamento, além da Escola Militar de Realengo, ali estabelecida até a década de 1940.
O edifício principal, que começou efetivamente a operar em 1913, mantém o discurso historicista presente a partir do final do século XIX. Considerando-se a intenção de algumas correntes do Ecletismo em associar a forma à função, é possível que a adoção do repertório medieval, à feição de um castelo, com torre central, bastiões e ameias faça alusão direta ao caráter militar da região, tornando-o um verdadeiro símbolo local. Foi tombado pelo município em 1998.
Cerca de cinco quilômetros na direção Central, antes de Bento Ribeiro, está a estação de Marechal Hermes, inaugurada em 1913, em conjunto como o bairro de mesmo nome, considerado pioneiro planejado, dedicado ao operariado. Foi uma iniciativa da presidência da república diante da carência de moradias populares.
Após o final do mandato de Hermes da Fonseca, o projeto foi interrompido, restando pouco menos que 200 residências das quase 1500 da proposta original.
O elegante edifício da estação foi inspirado na arquitetura inglesa, com fachada de tijolos aparentes e ornatos brancos, marcando pilares e vãos. Originalmente contava com torreão central, arrematado por um relógio de quatro faces, depois desaparecido.
A grande cobertura apoiava-se em elegante estrutura metálica, com desenhos de inspiração art-nouveau, enquanto a edificação guarda seu repertório eclético historicista, associando-o diretamente às origens britânicas para o transporte ferroviário. Foi tombada pelo município em 1996.
A tradição oral local comenta que o relógio foi levado para o parque das águas, em Caxambu, quando a cobertura central foi desmontada. No entanto, a comparação entre ambos não indica a semelhança alegada.
Vila Militar
Revista Fon-Fon, 15 fev. 1913.
Voltando sete estações, na direção Central do Brasil, chegamos ao Engenho de Dentro, onde funcionava uma parada desde 1873, que recebeu sucessivas reformas. O bairro adquiriu grande importância para a ferrovia, pois abrigava um conjunto de oficinas além de vilas para funcionários ferroviários. Nas imediações se localiza o Museu do Trem, onde está a Baroneza, a mais antiga locomotiva do Brasil, presente na inauguração da primeira estação ferroviária, em 1854.
Devido à grande demanda, o antigo edifício foi substituído por uma construção moderna em 1937, provavelmente inspirada nas gares europeias, do final dos oitocentos. Uma grande cobertura curva, apoiada em estrutura metálica, recobre todas as plataformas e as linhas ferroviárias, recebendo iluminação por vitrais dispostos nos grandes arcos laterais. O conjunto encontra-se tombado pelo município desde 2004.
Por ocasião dos jogos panamericanos de 2007 e posteriormente para os jogos olímpicos do Rio de Janeiro, em 2016, a estação foi reformada, recebendo acréscimos para atender à acessibilidade ao Estádio Nilton Santos.
Duas outras estações ferroviárias tornam-se notáveis pelas suas dimensões e importância cultural: a Barão de Mauá, popularmente conhecida como Leopoldina, inaugurada em 1926, com um projeto influenciado pelo classicismo inglês, desativada em 2002 e a antiga sede da Rede Ferroviária Federal, ou simplesmente o prédio da Central do Brasil, marco da arquitetura art-déco e do populismo varguista na década de 1930, inspirada em grandes edifícios internacionais com o mesmo repertório formal.
Ambas, grandiosas, referências na história do transporte coletivo da cidade, atestam a importância do trem para a população, que assiste, atônita, aos sucessivos aumentos de preços nas tarifas inversamente proporcionais à decadência da qualidade nos serviços prestados.
Enquanto isso, as ruas do Rio de Janeiro inspiram e tossem monóxido derivado de combustíveis fósseis nos crescentes congestionamentos diários, aguardando mágicas soluções.