William Bittar: Da morte, de velórios e de cortejos no Brasil

Colunista do DIÁRIO DO RIO fala sobre o Dia de Finados, feriado nacional que acontece nesta quarta (02/11)

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Cortejo fúnebre do filho de um Rei Negro, J.B.Debret, sec. XIX

Aproxima-se o Dia de Finados. Data solene, quando os antepassados são reverenciados de diversas maneiras, segundo costumes locais.

Em alguns povos da antiguidade, o medo da Morte, gerava formas eufemísticas de tratá-la. Os gregos criaram o barqueiro Caronte, a navegar pelo rio Aqueronte, levando as almas dos mortos para os Infernos. Vixit era a expressão utilizada pelos romanos para comunicar o falecimento de alguém, valorizando aquilo que foi vivido, evitando afirmar seu ”desaparecimento” do mundo natural. No México, uma verdadeira festa celebra aqueles que partiram, em procissões de música e cor.

Para o local de sepultamento foi adotado o termo cemitério, recolhido do grego koimetérion, pelo latim coemiteriu, ambos significando ”dormitório” ou lugar de repouso.

A partir do século XVII, os sepultamentos passaram a ser efetuados em locais abertos, inicialmente e preferencialmente fora dos limites da cidade, em espaços denominados campos-santos, associados às igrejas ou irmandades.

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Esta prática foi oficializada no Brasil a partir de meados do século XIX, mas alguns imigrantes protestantes já utilizavam tal solução, com a implantação do Cemitério dos Ingleses junto ao Saco da Gamboa, no Rio de Janeiro, na primeira década dos oitocentos pois anteriormente, para o Brasil católico, o enterro fora do templo era reservado àqueles que não professavam esta religião: protestantes, judeus, muçulmanos ou escravos e condenados.

Em algumas regiões do Brasil ainda é comum a associação do ritual de passagem para o ”outro lado” com gurufins e festas regadas a bebida e pontilhada por ”causos” e anedotário no decurso do velório como a prática de ”beber” o falecido.

Nos mais antigos registros sobre cerimônias fúnebres no Brasil, o depoimento do padre jesuíta Fernão Cardim relatou costumes dos povos indígenas, que para estas mortes e choros chamão os vizinhos e parentes, e se é principal, ajunta-se toda a aldeia a chorar, e nisto têm também seus pontos de honra, e aos que não choram lanção pragas. Depois tomam o corpo do finado e o metem em um pote que para isso têm debaixo da terra, e o cobrem de terra, fazendo-lhe uma casa, aonde todos os dias lhe levão de comer.

Esta atitude com espírito festivo também foi representada na influência africana, descrita com detalhes por viajantes estrangeiros ao Brasil, como Debret. Verdadeiras comemorações precediam os sepultamentos, transformando o séquito em um desfile quase carnavalesco: o tambor aproveita essa parada para fazer rufar seus instrumentos… erguem-se o negro fogueteiro, soltando bombas e rojões, e três ou quatro negros volteadores, dando saltos mortais ou fazendo ali mil outras cabriolas para animar a cena.

O sincretismo estava definitivamente presente e atuante no Brasil e o branco de descendência europeia incorporou este espírito festivo, aparentemente incompatível com o sentimento da perda.

Os mortos mais abastados recebiam tratamento esmerado, desde a escolha da roupa e do esquife, arrumação da casa para o velório ou da igreja, para uma missa de corpo presente acompanhada por algum réquiem. Aqueles mais pobres promoviam funerais menos pomposos, nas modestas salas de suas residências, mas sem dispensar as comidas e bebidas, por vezes acompanhadas pelo som de violas.

Após a Proclamação da República esta festa fúnebre pouco se alterou em sua essência. Em muitos lugares ainda é comum o velório regado a bebidas alcoólicas e muita conversa, documentado fartamente pela literatura em o Morto do Encantado morre e pede passagem, de Oduvaldo Vianna Filho, ou o Enterro da Cafetina, de Marcos Rey, ou pela música popular.

Houve choro e ladainha
Na sala e no corredor
E por ser considerado
Seu desaparecimento
Muita tristeza causou
”Velório do Heitor” | Paulinho da Viola

Há todo um preparativo que antecede o funeral propriamente dito, gerando figuras populares como o papa-defunto, tão presente no imaginário coletivo que se torna verdadeiro estereótipo sempre atencioso diante do de cujus. São oferecidos catálogos de caixões, apresentados em ordem decrescente de preços, serviços complementares, coroas, transportes que, se tratados diretamente com as concessionárias, certamente os valores serão mais acessíveis. Poucos pensam nisso diante de uma situação que requer providências urgentes.

No Brasil, à feição de hábitos consagrados em outros países, o ritual final já pode ser programado pelo futuro finado, ingressando em associações que oferecem o serviço pelas exéquias sem preocupação para os que ficam. Algumas propagandas desses novos serviços provocam polêmicas e até ações públicas, alegando o desrespeito pelo idoso, como se só esta faixa etária fosse o alvo final. É comum o oferecimento de novidades no setor funerário, inclusive serviços acessórios destinados aos familiares como urnas personalizadas para cinzas, cerimônias programadas, inclusive com projeções de vídeos, som ambiente, púlpito para homenagens.

Por vezes, em algumas regiões do nordeste do país, a cerimônia fúnebre ocorre com a participação de vizinhos, conhecidos, desconhecidos, mulheres contratadas – as carpideiras – que choram e entoam incelências ao falecido, antes da partida do féretro.

A morte, no Brasil, apresenta uma curiosa particularidade. Ainda que seja instrumento motivador do falecimento, o falecido acaba prevalecendo sobre Ela. Afinal, contar histórias do finado é uma maneira de mantê-lo vivo, perpetuando sua memória.

Aparentemente temida a morte, o contato com ”os que já foram” é exaltado e venerado, contabilizando-se aniversários de vida e de morte daqueles que ”partiram para o outro mundo”.

Histórias e estórias povoam o universo urbano e rural, chegando às emissoras de rádio, à música caipira e às páginas dos periódicos, como a célebre coluna e programa radiofônico de Almirante, por anos sucesso de público, Incrível, Fantástico, Extraordinário, que narrava, com detalhes, experiências sobrenaturais.

Apesar de cada vez menos freqüente, os retratos dos patriarcas ainda pendem das paredes das salas de estar ou de jantar, conferindo aos mortos a importância de intermediários com o sagrado, protegendo, guiando, enviando mensagens. Um culto doméstico semelhante os lares dos antigos romanos.

O aparente temor também revela, na verdade, o cultivo de sua negação ao torná-la viva na visão de médiuns, premonições, avisos, presságios, seja de finados familiares ou desconhecidos, que insistem em povoar nossas mentes assim como ruas, becos e vielas de nossas cidades a pedir, vagar, cobrar, procurar, cumprir seus desígnios ou destino interrompido.

Surgem as procissões das almas… E pelas vielas de muitas pequenas cidades ainda perambulam as mulheres de branco, as moças-fantasmas, as donzelas assassinadas, as noivas sedentas.

A cidade do Rio de Janeiro também conta com seus fantasmas a assombrar ruelas e prédios antigos (Diário do Rio, 24 Histórias Misteriosas e Assustadoras no Rio de Janeiro), perpetuando a memória e estabelecendo uma ligação direta entre o que foi e o que poderá ser.

Eram duas caveiras que se amavam
E à meia-noite se encontravam
Pelo cemitério os dois passeavam
E juras de amor então trocavam
Alvarenga & Ranchinho

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Carioca, arquiteto graduado pela FAU-UFRJ, professor, incluindo a FAU-UFRJ, no Departamento de História e Teoria. Autor de pesquisas e projetos de restauração e revitalização do patrimônio cultural. . Consultor, palestrante, coautor de vários livros, além de diversos artigos e entrevistas em periódicos e participação regular em congressos e seminários sobre Patrimônio Cultural e Arquitetura no Brasil.
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