William Bittar: Dia de Finados e cemitérios do Rio de Janeiro

Colunista do DIÁRIO DO RIO fala sobre os cemitérios do Rio de Janeiro

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Portada do Cemitério São João Batista Acervo Particular

Desde o segundo século da Era Cristã existe a prática da oração pelos mártires, muitos deles depositados nas catacumbas. A reverência pelos antepassados foi referendada pela Igreja Católica que, a partir do século V, dedicava um dia por ano às preces por todos os mortos.

Ao final do século X, o abade francês Odilo de Cluny, idealizou um feriado para reverenciar o Dia de Todas as Almas, depois Dia de Finados, em todos os mosteiros da Ordem Beneditina, prática que se difundiu pelo Ocidente Católico.

Os sepultamentos, originariamente realizados nas propriedades, foram transferidos para o interior das igrejas. Com o desenvolvimento das pesquisas sobre salubridade, finalmente surgiriam os cemitérios extramuros em todo o Ocidente, onde o culto aos mortos poderia ser realizado de forma cotidiana, além das datas especiais.

Em 2022, a pesquisadora Yolanda Zappaterra publicou “Cities of the Dead: The World’s Most Beautiful Cemeteries”, obra que lista algumas dezenas dos cemitérios mais belos do mundo, na opinião da autora inglesa. Na introdução do livro, ela registra que “as cidades dos mortos são janelas para todo aspecto da humanidade e sua natureza”.

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Entre alguns dos campos santos citados estão, por ordem cronológica, o Cemitério de South Park Street, em Kolkata, Índia, criado em 1767 para os viajantes europeus, muitos deles da Companhia das Indias Ocidentais, vítimas das moléstias tropicais; Cemitério da Recoleta, em Buenos Aires, que começou a funcionar em 1822; a Necrópole de Glasgow, na Escócia, criada em 1831; Cemitério Highgate, em Londres, fundado me 1839, onde está o túmulo de Karl Marx; Cemitério Skogskyrkogarden, em Estocolmo, um parque implantado em 1920.

Destaca-se o cemitério mais visitado do mundo, o Père Lachaise, em Paris, com mais de dois séculos de existência, implantado por iniciativa de Napoleão Bonaparte, em 1804, que abriga celebridades de diversas nacionalidades e habilidades.

O Brasil também foi contemplado na obra de Zappaterra, que incluiu o Cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro, considerando seus aspectos históricos e visuais, um verdadeiro museu a céu aberto de obras de arte que adornam túmulos de figuras famosas, como Santos Dumont, Machado de Assis, Carmem Miranda, Vinícius de Moraes, além de nobres e políticos.

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Esta necrópole, localizada à Rua General Polidoro, 22, em Botafogo, foi criada em 1851, quando o Império autorizou a Santa Casa de Misericórdia a administrar os novos cemitérios da cidade.

A população relutou bastante no início do funcionamento destes campos santos, pois as inumações eram realizadas nos interiores ou junto a igrejas. No entanto uma epidemia de febre amarela, que provocou um número expressivo de mortes, acelerou a prática do sepultamento extramuros e a criação de outros cemitérios pela cidade.

Até mesmo o aspecto externo recebeu melhoramentos, contando com a intervenção de arquitetos como Bethencourt da Silva, autor da portada do São João Batista e da necrópole do Caju, onde estão o Cemitério da Ordem Terceira do Carmo, da Ordem Terceira de São Francisco da Penitência, São Francisco Xavier, além do Cemitério Comunal Israelita, inaugurado em 1955, em terreno cedido pela prefeitura e Santa Casa de Misericórdia, ocupando uma antiga área de sepultamento cristão destinado a defuntos desconhecidos.

Esse grande conjunto funerário, o maior do Estado do Rio de Janeiro, iniciou suas atividades em 1851, em local onde havia um cemitério para escravos, sob tutela da Santa Casa, por iniciativa de seu provedor José Clemente Pereira e continua em funcionamento, acrescentado elementos contemporâneos como cemitérios verticais e crematórios.

No entanto, o primeiro campo santo da cidade foi produto de um acordo celebrado entre os ingleses e o regente D. João, permitindo o sepultamento de protestantes em seu próprio cemitério. Assim surgiu o British Burial Fund, em 1811, o mais antigo a céu aberto do Brasil ainda em funcionamento, originalmente às margens da baía da Guanabara e depois, ironicamente, junto à Cidade do Samba, na Gamboa, que o separa do mar.

O bairro do Catumbi recebeu sua necrópole, São Francisco de Paula, um dos mais tradicionais da cidade, inaugurado em meados do século XIX, administrado pela Venerável Ordem Terceira dos Mínimos de São Francisco, que logo recebeu restos mortais oriundos da igreja no Largo de São Francisco, além de três mil vítimas da febre amarela.

A zona norte da cidade, ainda no final do século XIX, foi contemplada com um cemitério implantado em outubro de 1895, junto à igreja de Nossa Senhora da Apresentação, em Irajá, uma das mais antigas ermidas do Rio, provavelmente originada no século XVII.

Outras necrópoles foram distribuídas pela cidade, à medida que a densidade populacional aumentava por todos os bairros: Campo Grande, Cacuia, na Ilha do Governador; Pechincha, em Jacarepaguá; Realengo, Ricardo de Albuquerque, Santa Cruz, entre outros administrados pela iniciativa particular.

Inhaúma, por exemplo, também recebeu seu cemitério e destinou uma área à inumação de israelitas sob administração da Associação Beneficente Funerária e Religiosa Israelita, fundada em 1916 por mulheres rejeitadas por sua própria colônia, pois exerciam a prostituição. A área foi tombada pela prefeitura do Rio de Janeiro em 2007.       

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A Ilha de Paquetá, ao fundo da baía da Guanabara, também contava com cemitério próprio, construído em 1860 por iniciativa de Dona Escolástica Maria Lisboa, denominado Santo António. Na década de 1930, recebeu muitas benfeitorias através de seu administrador, o pintor Pedro Bruno, que construiu a capela, revestida de pedras, o mausoléu da Marinha, em homenagem aos mortos na Revolta da Armada, de 1893, além do pitoresco e singular Cemitério dos Pássaros, com acesso lateral.

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A valorização dos terrenos urbanos, o aumento populacional e algumas outras questões culturais e sanitárias contribuíram para a modificação da localização e características projetuais de novos cemitérios.

Em 1970, o Rio assistia à inauguração de seu primeiro cemitério-jardim, prática muito comum em outros países. Está localizado no bairro de Sulacap e se caracteriza pela padronização das lápides dispostas ao nível do gramado, sem qualquer destaque em relação às demais.

Em 1999, após muitas iniciativas frustradas, foi inaugurado o primeiro cemitério vertical da cidade, o Memorial do Carmo, na necrópole do Caju, que também abriga o primeiro crematório, iniciativas que vêm se difundindo.

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Em menos de dois séculos, os cemitérios brasileiros assistiram a profundas modificações que certamente alteram as práticas de reverência aos mortos numa data como o Dia de Finados.

Algumas necrópoles da cidade já contam com QR codes em algumas sepulturas mais visitadas, de figuras mais conhecidas, que ampliam as informações sobre aquelas personalidades.

É a tecnologia em novos tempos de celebrações, porém não tão diferente de quando um parente recebia pertences daquele bravo soldado romano que morreu no campo de batalha e ouvia: Vixit! Ou seja, Viveu!

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Carioca, arquiteto graduado pela FAU-UFRJ, professor, incluindo a FAU-UFRJ, no Departamento de História e Teoria. Autor de pesquisas e projetos de restauração e revitalização do patrimônio cultural. . Consultor, palestrante, coautor de vários livros, além de diversos artigos e entrevistas em periódicos e participação regular em congressos e seminários sobre Patrimônio Cultural e Arquitetura no Brasil.
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