A terça-feira de Carnaval, outrora denominada “terça-feira gorda”, marca a transição do período da folia para a Quaresma. Mesmo considerando a diversidade de praticantes de algumas religiões como a católica, anglicana, luterana, presbiteriana e outras, os rituais envolvidos assistiram a profundas transformações nas últimas décadas.
A Quaresma (quadragesima dies, do latim) é o período que antecede a Páscoa, uma das mais importantes celebrações cristãs. Assim, as festividades se encerravam à meia-noite da terça-feira gorda, pois era um último momento de fartura e licenciosidade antes das restrições que viriam após as cinzas aplicadas nas testas dos fiéis, na missa de quarta-feira.
Muitos bailes encerravam ao som de Cidade Maravilhosa e os foliões saíam pelas ruas à procura de algum bloco de sujo perdido na madrugada, ou aguardando alguns sempre proibidos, mas renitentes, que insistiam em desfilar na quarta-feira, como o famoso “Chave de Ouro”, no Engenho de Dentro, perseguido pela polícia em suas formações instantâneas, ou o irreverente “O que é que eu vou dizer em casa”, formado por aqueles que foram detidos nos dias da folia, por delitos sem importância naquela ocasião, como vadiagem, bebedeira ou por tentar entrar sem convites em bailes e desfiles. Havia, ainda, o Baile da Cremação das Tristezas, promovido, sob protestos da sociedade, por algumas agremiações.
O Jornal, 25 fevereiro de 1971
Para a Igreja Católica, durante a quarta-feira, são realizadas missas e a imposição de cinzas, ritual que representa o compromisso do fiel em manter-se no bom caminho cristão. Esta prática surgiu desde os primórdios do cristianismo e foi incorporada como ritual sacramental a partir do século XI.
Os fiéis, contritos, reconhecem sua mortalidade e a necessidade da graça divina como perdão de seus pecados e recebem as cinzas originárias da queima das palhas do Domingo de Ramos, sob a frase “Lembra-te que és pó e que ao pó retornarás”.
Toda essa cerimônia era sucedida pelo jejum, pelo menos de carne, durante todo o dia. Rádios e emissoras de televisão restringiam a apresentação de programas de humor ou músicas barulhentas. Reinava um respeitoso silêncio em nossa infância, pois até mesmo as travessuras não receberiam punições naquele dia.
Nas semanas seguintes, até a Páscoa, era comum a continuidade do jejum de carne às sextas-feiras, dia que não se deveria sequer ouvir música, fazer a barba ou participar de festas.
Chegava Sexta-feira da Paixão, dia de comer canjica branca, quase tudo proibido: lavar roupa, pescar, jogar ou assistir futebol, beijar, qualquer atividade associada ao lazer, vaidade e, principalmente, sexo. A gravidade do pecado seria proporcional à punição recebida. Em alguns lugares, lendas indicavam o aparecimento de uma cauda de burro ou pés de bode, tornando público aquela inadequada ou herética atitude.
Nas igrejas, nossas avós católicas nos levavam para observar as imagens cobertas por mantos roxos, a partir do Domingo de Ramos (o quinto domingo da Quaresma), quando se iniciavam as celebrações da Paixão de Cristo.
Os bailes de carnaval calavam seus instrumentos, aguardando o Sábado de Aleluia, quando algumas agremiações realizavam a festa da vitória, raramente frequentada por foliões fantasiados, pois os trajes já estavam guardados para o ano seguinte.
As arquibancadas para assistir as escolas de samba eram desmontadas, pois sequer se cogitava em algum desfile das campeãs ou festividade afim até a Páscoa, celebrada no primeiro domingo após a primeira lua cheia do outono.
Seriam seis semanas dedicadas à reflexão, alguns dias de jejum e penitência até a Ressureição, que eram efetivamente guardadas por muitos fiéis, diminuindo muito ao longo das últimas décadas, principalmente nos grandes centros urbanos, como o Rio de Janeiro.
Certamente, as luzes, o progresso, a avalanche de informações foram responsáveis pelo abandono dessas práticas e muitos esquecimentos.
Quaresma, em muitos recantos desses diversos brasis, era a temporada de bruxarias, lobisomens à lua cheia, mulas sem cabeça, assombrações, encantados e procissões de almas penadas, como aquela avistada por uma velha senhora, conhecida pela prática cotidiana da fofoca. Observando por entre as frestas da gelosia, recebeu uma vela de uma criança que passava no cortejo. No dia seguinte, ao acordar, aquela vela se tornara um fêmur humano….
A tentação estava em cada esquina, em cada viela escura, espreitando para assustar ou desviar o caminho dos devotos.
A iluminação feérica das ruas, a avidez pela festa que não pode terminar, os lucros estrondosos dos organizadores, a ganância do poder público que alardeia os milhões arrecadados, independente de preocupações com segurança, infraestrutura e saúde coletiva, tudo contribuiu para o esquecimento da essência da Quaresma. O carnaval continua pelas ruas dos grandes centros, com desfiles programados para o sábado seguinte à Quarta-Feira de Cinzas, megablocos pelas ruas aglutinando milhares de foliões, atrapalhando o trânsito e o cotidiano das cidades.
Bruxas e lobisomens estão mais presentes do que antes, circulando no transporte coletivo, batendo carteiras e celulares, assediando sem escrúpulos, aplicando boa-noite-cinderelas, enquanto antes viviam apenas na imaginação. Procissões de desvalidos invisíveis quedam-se sob as marquises urbanas, cobrindo-se com as sobras de fantasias.
A Quaresma começou, mas na prática, em poucos brasis ainda é possível identificar seus ecos entre os baticuns dos blocos. No Rio, apenas as quaresmeiras nativas da Mata Atlântica, que sobrevivem na floresta da Tijuca, insistem em reconhecer sua importância, celebrada com sua floração roxa, como aqueles mantos que cobrem as imagens das igrejas na Semana Santa.
As quaresmeiras na Floresta da Tijuca – Acervo Particular