William Bittar: Kûánãpará, uma terra sem males antes de um Rio de Janeiro

No aniversário do Rio de Janeiro, colunista do DIÁRIO DO RIO fala sobre os primeiros moradores de nossa terra

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Vitral na igreja dos Capuchinhos, Tijuca, representando São Sebastião participando da batalha contra os franceses em 1567. Acervo Particular

É provável que o povo tupinambá tenha se instalado na baía de Kûánãpará cerca de 1.500 anos antes da chegada dos europeus, no início do século XVI, com a expedição de Gaspar de Lemos, que teria atingido a região em primeiro de janeiro de 1502, batizando-a equivocadamente uma baía como Rio de Janeiro, conforme a tradição corrente.

Provavelmente, a geografia local composta de morros muito próximos à orla, lagoas de água salobra, temperaturas elevadas, florestas densas, não atraiu os colonizadores para ocupação imediata, dirigindo-se para o sul, se estabelecendo em São Vicente, em 1532, iniciando o cultivo da cana-de-açúcar naquela região paulista.

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Detalhe de mapa de André Thevet, com destaque para o registro da França Antártica, sec. XVI
Domínio público

Considerando relatos de alguns religiosos que visitaram o Novo Mundo, como Jean de Léry, André Thevet, Fernão Cardim, José de Anchieta, todos durante este primeiro século de ocupação, os primeiros contatos dos povos originários com os europeus foram amistosos.

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Léry apresenta uma descrição detalhada da entrada da baía, em sua obra Histoire d’um Voyage faict em la terre du Brésil de 1578:

“Quem deixa o mar grande, precisa costear três pequenas ilhas desabitadas, contra as quais os navios, se não são bem dirigidos, correm grande perigo de bater e despedaçar-se, e a embocadura é bastante penosa. Depois d’isto é preciso passar um estreito, que não chega a ter um quarto de légua de largura, e é limitado do lado esquerdo, ao entrar, por uma montanha e rochedo piramidal, que não é somente de maravilhosa e excessiva altura, mas também, ao vê-la de longe, dir-se-ia, que é artificial; e com efeito por ser ela redonda, e semelhante a uma grossa torre, nós, os franceses, por modo hiperbólico, a denominávamos pote de manteiga”, numa alusão ao Pão de Açúcar.

Nas águas da Guanabara, Léry observou várias espécies de peixes como sargos, tubarões, arraias, golfinhos e outros médios e miúdos, destacando “as horríveis e espantosas baleias, as quais mostram-nos diariamente suas grandes barbatanas fora d’água”, em suas palavras.

No entorno daquela baía que o homem branco denominou Guanabara, estabeleciam-se dezenas de aldeias, muitas delas devidamente identificada por pesquisadores, abrigando milhares de nativos, gradativamente expulsos ou exterminados pelo invasor.

No Auto de São Lourenço, escrito por Anchieta, diversos nomes são citados, alguns perduraram, enquanto outros aguardam sua associação com suas respectivas localizações: Moçupiroca, Jequei, Gualapitiba, Niterói e Paraíba, Guajajó, Carijó-oca, Pacucaia, Araçatiba

Tupinambás e Temiminós, tribos do tronco tupi, dividiam aquelas terras junto à orla daquela grande enseada, o “seio do mar”.  A região oeste, incluindo o sertão carioca, era ocupado pelos tupinambás enquanto os temiminós, tratados pejorativamente de maracajás (gatos do mato) pelos inimigos, se estabeleciam no território da atual Ilha do Governador, denominada Paranapuã, na língua tupi ou Ilha do Gato, pelo colonizador.

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Tupinambás em guerra, sec. XVI.
Jean de Léry – Domínio público

Ainda que fossem inimigos, ambos os povos pertenciam ao grande tronco tupi, adotando língua, costumes, religião, organização semelhantes, incluindo os rituais de antropofagia, documentado por muitos viajantes estrangeiros.

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Ritual de antropofagia documentado por Thevet, sec. XVI.
André Thevet, domínio público.

Em meados do século XVI, com a chegada de Villegagnon para estabelecer a França Antártica, o povo tupinambá tornou-se aliado dos franceses, que já conheciam através de escambo realizado em décadas anteriores, principalmente por causa do pau-brasil.

Duas décadas anteriores, o colonizador português tentara estabelecer um contato amistoso com os tupinambás, mas a necessidade de mão de obra para implantação de engenhos canavieiros escravizou os povos originários. Tal violência provocou reações, agravada pela devastação de florestas para o plantio de cana-de-açúcar, que não foi bem sucedido como ocorrera em São Vicente. Tornaram-se inimigos ferrenhos dos portugueses que, por sua vez, aliaram-se aos temiminós.

Desenhavam-se as aliança que iriam perdurar desde a ocupação inicial de Vilegagnon no forte Coligny, em 1555, implantado no interior da baía da Guanabara, passando pela fundação da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, em 01 de março de 1565, na entrada da barra, culminando com as grandes batalhas que precederam a expulsão dos franceses naquele 20 de janeiro de 1567, junto à praia de Uruçumirim, localização hipotética da Karióka, importante taba tupinambá localizada à esquerda da entrada da baía.

Com a chegada de Estácio de Sá e a fundação da nova cidade, polo decisivo para reconquista do território, os temiminós lutaram ao lado dos portugueses e, segundo a lenda, junto a São Sebastião, presente na batalha final, guiando as forças lusitanas para a vitória. 

Como recompensa pela aliança, o cacique temiminó Araribóia, depois convertido ao cristianismo, recebeu o título de Cavaleiro da Ordem de Cristo e terras da Coroa Portuguesa na região onde depois se estabeleceu o bairro de São Cristóvão, devidamente registradas na cartografia oficial. Posteriormente foi agraciado com terras do outro lado da baía, na região de São Lourenço, em Niterói.

Enquanto isso, os limites da cidade recém fundada se estendiam da orla atlântica de Ponta Negra à ponta da Marambaia e para o interior, subia a Serra do Mar até a margem direita do rio Paraíba do Sul.

Sobre as edificações, Léry também apresenta uma detalhada descrição:

Á exceção da casa situada sobre o rochedo, na qual algum madeiramento existe, e de alguns baluartes, nos quais estava posta a artilharia, e que são revestidos de alvenaria, tudo o mais consiste em casebres e como foram os selvagens os arquitetos, por isso os construíram ao seu modo, isto é, de madeiras toscas com a cobertura de ervas.

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O plantio e o hábito de fumar dos povos originários. Ao fundo, suas habitações. sec. XVI
Thevet, domínio público

Ao pastor calvinista não passou despercebido o povo da terra, merecendo uma cuidadosa descrição, pois habitou entre eles durante quase um ano.

“Os Tupinambás, entre os quais residi e tratei familiarmente quase durante um ano, não são maiores, mais grossos ou mais pequenos de estatura do que somos na Europa; não têm corpo monstruoso nem desmedido em comparação conosco; são, porém, mais fortes, mais robustos, mais fornidos, mais bem dispostos, e menos sujeitos a moléstias, e quase não têm coxos, tortos, aleijados, nem doentes.

Quanto à sua cor natural, atenta à região quente que habitam, não são negros; são, porém, apenas morenos; (…) Coisa não menos estranha quanto difícil de crer para aqueles que o não viram é que homens, mulheres e crianças vivem e andam usualmente tão nus como saíram do ventre materno, não só sem ocultar parte alguma do corpo, como também sem mostrar sinal algum de pejo nem vergonha.”

Léry, Thevet, Cardim, Anchieta e outros visitantes descreviam, extasiados, visões do paraíso, uma provável terra sem males ao sul do Equador, quase sob o trópico. Uma terra verdejante, próspera, ocupada por um povo com hábitos diferentes que inicialmente não eram propensos à hostilidade.

Chegaram portugueses, franceses, holandeses, ingleses, espanhóis, trazendo artefatos desconhecidos que sugeriam progresso, porém impregnados do preço alto que os povos originários deveriam pagar assistindo à poluição de suas águas, extermínio de vários animais, captura de suas aves, esterilização de suas terras, comprometimento de sua saúde frágil diante dos males civilizados, que pouco a pouco consumiriam seus habitantes e aquela terra sem males.

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Carioca, arquiteto graduado pela FAU-UFRJ, professor, incluindo a FAU-UFRJ, no Departamento de História e Teoria. Autor de pesquisas e projetos de restauração e revitalização do patrimônio cultural. . Consultor, palestrante, coautor de vários livros, além de diversos artigos e entrevistas em periódicos e participação regular em congressos e seminários sobre Patrimônio Cultural e Arquitetura no Brasil.
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