Há cerca de um mês, quase todas as escolas, públicas e privadas, retomaram suas atividades que, para atender à legislação vigente, principalmente à lei nº9.394, de 20 de dezembro de 1996, contarão com 200 dias de aulas.
Aqueles com mais de 65 anos, que cursaram os antigos ginásios e científicos, muitos dos quais dirigem importantes instituições e chegaram a presidir o país, como Fernando Henrique Cardoso, contavam com um calendário absolutamente distinto, nem por isso comprometendo suas formações educacionais e cidadãs.
Como depoimento pessoal, toda minha vida escolar aconteceu em escolas públicas, de notável qualidade e excelentes professores, com generosas férias.
Até a implantação da lei nº5692/71, criada pelo governo militar, a distribuição pedagógica considerava um curso primário, de seis anos, sucedido por um ginásio, de quatro anos, encerrada pelo científico ou clássico, com três anos de duração.
Para aqueles estudantes que se interessavam pelo ensino técnico, havia um rigoroso concurso de seleção para as Escolas Técnicas, com ensino de excelência, assim como na maioria dos outros ciclos.
As aulas eram distribuídas, sem perda de qualidade ou interesse, entre os meses de março e junho (começavam sempre após o carnaval), férias de julho, por todos os seus trinta e um dias, retomadas em agosto até início de dezembro. Depois, férias de três meses, com exceção para aqueles que ficavam em “segunda época”.
O Ministro da Educação, o coronel Jarbas Passarinho, foi responsável pela implantação da reforma de ensino que criou o primeiro e segundo graus, incentivando o ensino técnico, substituindo o antigo científico por ensino profissionalizante. O estudante, ao final daquele ciclo, receberia um certificado de habilitação profissional, proporcionando sua entrada no mercado de trabalho, carente de técnicos.
A mensagem do ministro dizia que a reforma pretendia “abandonar o ensino verbalístico e academizante para partir, vigorosamente, para um sistema educativo de 1º e 2º grau voltado às necessidades do desenvolvimento”, ou seja, incentivar cada vez menos o ato de pensar, discutir e contestar, retirando a força latente do movimento estudantil efervescente no mundo em 1968, que se expressava nas barricadas e muros de Paris, se estendendo por tantos outros países, incluindo o Brasil.
Este ensino era atribuição dos governos estaduais, que receberam um prazo relativamente curto para adequação às novas medidas. A mudança abrupta não encontrou as instituições preparadas para atingir os objetivos expressos na lei, provocando uma primeira grande e grave crise no ensino do segundo grau, pois muitas escolas não contavam com corpo docente e instalações para atender à nova demanda. Muitas vezes eram dias e dias sem aulas, mas o certificado viria ao final do curso.
Em pouco tempo se percebeu o fracasso dessas modificações, porém só após onze anos do fim do governo militar, na gestão do ministro Paulo Renato de Souza, também responsável por muitas decisões equivocadas, promulgou-se a lei nº9.394/96, rebatizando os ciclos escolares de Educação Básica, abrangendo educação infantil, ensino fundamental e ensino médio e Educação Superior, que pouco a pouco alterou sua forma de acesso, abandonando o antigo exame vestibular, trocado pela avaliação do Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM.
Nessa ocasião, alguns ilustres educadores perceberam que o número mágico de 200 dias era o necessário para a relação ensino-aprendizagem, provavelmente apoiados em estatísticas, onde a quantidade é mais importante do que a qualidade dos alunos, docentes e do conteúdo compartilhado em aulas.
Os cursos superiores foram obrigados a aumentar suas tradicionais quinze semanas semestrais de aulas para vinte, agradando aos grandes proprietários de escolas particulares. Surgia um argumento convincente para praticar aumentos de mensalidades, justificado pelo acréscimo no período letivo. Em algumas situações, uma equação oportunista diminuiria os salários docentes horistas, aumentando os lucros patronais.
A prática desses quase trinta anos de aplicação dessa legislação vem demonstrando que, com raras exceções, os resultados são muito abaixo do idealizado por seus criadores. Recentemente, reinventaram a roda, incluindo um “inédito” ensino profissionalizante e estudantes podem “escolher” grades curriculares conforme suas vocações ou necessidades.
Mas as aulas estão de volta, tentando se restabelecer após a pandemia. No Rio de Janeiro, o noticiário indica a falta de professores e de condições mínimas para receber os alunos da educação básica da rede pública, enquanto a rede privada se apresenta pronta para este reinício. Um colégio estadual, por exemplo, está promovendo “obras emergenciais”, iniciadas após o fim das férias, deixando centenas de estudantes fora das salas, muitos deles cursando o último ano do Ensino Médio.
Recordemos uma outra diferença para os maiores de 65 anos. O acesso ao ensino público era objeto de desejo de pais e estudantes, pois significava gratuidade associada à grande qualidade, deixando aquela rede particular das décadas de 1960 e 1970 para quem não conseguisse acesso através de provas disputadas às muitas instituições estaduais do Rio (ainda não houvera a fusão e toda a rede era estadual da Guanabara), onde estavam os melhores alunos e professores.
Íamos todos, orgulhosos em nossos uniformes, que de fato equalizavam, muitos deles doados pela Caixa Escolar para aqueles mais carentes. O material escolar não era muito variado, disponível em algumas papelarias famosas no Centro do Rio, como as antigas Casa Mattos e Casa Cruz, disputando espaço e clientela no Largo de São Francisco, ou as lojas da Fundação Nacional do Material Escolar – FENAME, onde encontrávamos os Atlas Geográficos e Históricos, que nos acompanhavam pelo curso, a preços acessíveis.
Sapatos resistentes, como o Vulcabras para os meninos, ou modelo boneca, para as meninas. Galochas de borracha, para os dias de chuva. Para os livros (A Mágica do Saber e suas fichas para as férias de julho) e cadernos devidamente encapados com as cores das matérias, grandes pastas negras, de couro legítimo ou sintético, protegidas por plástico colocado na larga base, aumentando sua duração. Alguns levavam suas merendeiras com sanduíches de pão de forma e uma pequena garrafa com achocolatados feitos em casa ou algum refresco natural, impregnando nossas memórias olfativas por toda vida.
Também era possível a refeição na escola, onde era servido mingau de sagu, macarrão com salsicha ou o famoso arroz com peixe, quase sempre bem preparados e servidos com fartura, acompanhados de algum refresco, geralmente groselha, e alguma sobremesa.
Ali participamos de nossas primeiras festas juninas, dançamos nossas primeiras quadrilhas, homenageamos as professoras, que ainda não eram “as tias” e começávamos o caminho para viver em sociedade, respeitando a diversidade.
No ginásio, mais independentes, era possível comprar um pão doce com um guaraná caçula, de vez em quando, na cantina. Ou guardar as moedas para um bom pastel com caldo de cana na saída, perto do ponto do ônibus, ou mesmo para uma sessão no cinema poeira mais próximo, que permitia nossa entrada inclusive em filmes proibidos para menores, desde que sem uniformes.
As aulas, ministradas por ótimos professores, traziam conhecimento e noções de cidadania. A teoria (chamada pejorativamente verbalística pelo coronel Passarinho) era complementada por atividades práticas de qualidade, em laboratórios devidamente equipados. Havia Canto Coral, Curso de Teatro e Cinema, Festivais de Música, depoimento de quem viu e vivenciou em colégios como Visconde de Cairu, no Méier, onde estudei por seis anos, entre 1967 e 1972.
A instituição está perto de completar 105 anos e o depoimento de Marcos Carnavale de Barros, ex-professor e diretor do colégio, concedido ao jornal o Globo, em setembro de 2018, por ocasião do centenário, revelava que, na década de 1960, “o ingresso, por exame de admissão, era muito difícil; eram uns 5000 candidatos para 200 ou 300 vagas”.
Terminado o quarto ano, após algum teste vocacional, a maioria contava com três opções para o científico nas escolas públicas: técnica, saúde e o clássico, este geralmente (machistamente) dedicado às meninas, que também poderiam ingressar no Curso Normal, para formação de professoras (no feminino). Este último foi inexplicavelmente extinto pelo Sr. Paulo Renato, causando inestimáveis perdas para o ensino em todo o país, principalmente em seus recantos mais remotos.
Era o grande momento que precedia o ritual de passagem, que no Brasil ocorre de forma muito diferente daquele cansativamente documentado pelo cinema americano.
Para muitos, quando a situação financeira permitia, os cursos pré-vestibulares se apresentavam como portais irresistíveis para a faculdade.
De alguma forma, ali acabava a adolescência, se aproximando do limiar do mundo adulto.
Naquela década de 1970, seríamos testemunhas de um tempo escolar que passou e as mudanças não vieram para melhorar. A própria censura e falta de incentivo ao ato de pensar pouco a pouco se aproximava de um resultado pouco promissor, com o controle de “corações e mentes”, como expunha aquele filme de Peter Davis, em 1974, exibido em circuitos de arte, apesar da perseguição oficial.
O ensino, com raríssimas exceções, não logrou o êxito idealizado naquelas sucessivas reformas e aumento de dias letivos. Talvez interesses diversos, alguns pouco meritórios, acreditavam que a maior quantidade de horas seria suficiente para substituir a capacidade daqueles docentes anteriores a propostas mágicas e “revolucionárias”.
Enquanto isso, uma verdadeira revolução pulsava naqueles corações ávidos por compartilhar ideias, ideais e conhecimento, pois “sem a curiosidade que move e inquieta, que insere na busca, não se aprende ou ensina”, nas palavras de Paulo Freire.
eita saudosismo. kkkkkkkkk