William Bittar – Oratórios urbanos do Rio: do passado colonial ao século XXI

A presença de oratórios era constante nas vilas coloniais brasileiras

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Oratório urbano no Rio de Janeiro, demolido no início do século XX Reprodução Augusto Malta

A presença de oratórios era constante nas vilas coloniais brasileiras. De origem portuguesa, apresentaram-se de diversas formas, fixos ou portáteis, presentes nos interiores das residências rurais ou urbanas, muito deles de apurada confecção, ou nas ruas, elementos arquitetônicos integrados aos edifícios ou praças.

Os oratórios portáteis, assim como ocorrera na Idade Média, poderiam ser transportados durantes as expedições de consolidação do território. Alguns deles tornaram-se marcos da fundação de arraiais.

O Folclore Mineiro, região que ainda abriga muitas dessas peças sacras em seus becos e vielas, saúda o elemento devocional: Oh Deus, salve o Oratório / Oh Deus, salve o Oratório / Onde Deus fez a morada, oiá, meu Deus / Onde Deus fez a morada, oiá, música gravada por Milton Nascimento.

Recentemente o Diário do Rio noticiou a reinauguração do oratório dedicado à Nossa Senhora do Cabo da Boa Esperança, localizado na Rua do Carmo, nos fundos da Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte do Carmo, no Centro do Rio, marcada para outubro de 2023. (https://diariodorio.com/apos-20-anos-interditado-oratorio-da-rua-do-carmo-sera-reinaugurado-em-outubro/)

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A matéria da jornalista Patricia Lima registrou este elemento religioso como único remanescente entre os mais de setenta oratórios existentes distribuídos pela cidade quando a Família Real aportou no Rio, em 1808.  

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Em muitas vilas da colônia esta prática se repetia. Ouro Preto, por exemplo, ainda mantém alguns em suas vias, marcos da memória colonial. Além dos oratórios, era comum a presença dos passos da paixão, pequenas capelas que eram abertas durante as celebrações da Semana Santa. Todos abrigavam imagens ou pinturas, tornando-se pontos de proteção para os transeuntes contra as assombrações noturnas, presentes nas lendas urbanas. Antes da instalação da iluminação pública, eram as lamparinas e cadeeiros que traziam alguma luz para becos e vielas, contribuindo para afastar os fantasmas ou espíritos malfazejos.

Alguns oratórios eram objeto maior de devoção ou lendas, como aquele existente no Arco do Teles, próximo à futura sede deste Diário, dedicado a Nossa Senhora dos Prazeres.  A peça foi demolida e a imagem de Nossa Senhora transferida para a igreja de Santo Antônio do Pobres, à rua dos Inválidos. O arco junto ao oratório abrigaria Barbara dos Prazeres, a quem atribuíam atividades de bruxaria, além de outros crimes. Após seu misterioso desaparecimento, o local ficara assombrado.

Daqueles setecentistas restou apenas o oratório dedicado a Nossa Senhora do Cabo da Boa Esperança, disposto numa via urbana, provavelmente originário do Morro do Castelo. Seu contemporâneo está no alto do morro de Santo Antônio, junto ao acesso à igreja conventual, dedicado ao orago.

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O século XIX não contém registros de novos oratórios. Certamente, a construção de muitas capelas em novos bairros, algumas delas elevadas a paróquias, substituiu aquela prática devocional.

No século XX, com o movimento neocolonial na arquitetura, provavelmente os antigos oratórios, muitos deles agregados a residências ou estabelecimentos comerciais, foram substituídos pela adoção dos painéis de azulejos nas fachadas.

A zona norte da cidade contém notável coleção dessas peças presentes nos frontispícios curvilíneos ou mesmo em varandas. Tal prática também foi utilizada em bairros da zona sul, onde um nicho iluminado surge no lugar da azulejaria, como na rua Rumânia, em Laranjeiras, projeto do arquiteto Lucio Costa, no início da década de 1920.

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Ao longo do século XX, percorrendo ruas e praças da cidade, é possível registrar aquele pequeno elemento religioso, representando a fé popular, nem sempre com informações suficientes sobre sua construção ou retirada.

No alto do Morro da Providência, um dos redutos mais tradicionais da cidade, provavelmente berço da primeira favela carioca, foi construído um oratório dedicado ao Cristo Redentor, inaugurado em primeiro de janeiro de 1901, que ainda resiste ao tempo.

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É possível que a cidade ainda guarde dois outros oratórios centenários, mas é necessária uma pesquisa detalhada para obter informações precisas. Um deles está localizado junto à escadaria que leva ao átrio da igreja de Nossa Senhora da Glória do Outeiro. Um nicho escavado na amurada abriga uma imagem da Virgem, réplica de original no Algarve, Portugal, que pode ser associada à origem daquele templo pelo ermitão Caminha.  

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Outro espaço secular de oração é a gruta junto à igreja de Nossa Senhora da Pena, em Jacarepaguá, marco do milagre relativo ao surgimento de uma fonte no alto daquele penedo, no final do século XVIII, atendendo às preces dos trabalhadores

Por toda a capital fluminense é possível registrar diversos oratórios que surpreendentemente saltam aos nossos olhos em esquinas e praças, materializando a religiosidade da população, por vezes em devoções híbridas entre os cultos católicos e de matrizes africanas.

Um exemplo que assinala tal sincretismo é o oratório dedicado à Escrava Anastácia, localizado na Praça Vinte e Quatro de Outubro, em Inhaúma. Sob uma modesta cobertura está o busto de Anastácia, uma imagem de São Jorge e outra, de Nossa Senhora da Aparecida, onde muitos devotos acendem suas velas, às segundas-feiras, dedicadas às Almas. Uma placa registra o nome do idealizador, em agradecimento a uma graça alcançada e a data de sua reinauguração, em 31 de maio de 2017.

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Na praça Presidente Aguirre, no bairro de Fátima, destaca-se um nicho paroquial dedicado a Nossa Senhora que batiza aquele recanto do Centro do Rio, quase sempre ornado de flores, inaugurado em 13 de maio de 1951.

Há alguns anos, pressões de outras religiões tentaram demolir um oratório dedicado a Nossa Senhora de Aparecida, à praça Milton Campos, no Leblon. Prevaleceu o bom senso e o sentimento de liberdade de culto, presente em nossa Constituição e o pequeno altar foi preservado.

Muitos existem sem documentação, aguardando registro, em bairros como Bento Ribeiro, Bonsucesso, Cachambi, Copacabana, Madureira, Penha, Ramos, Rocha Miranda e tantos outros marcos culturais de uma cidade, assim como qualquer outra representação de fé. Certamente os leitores muito poderão colaborar com seus depoimentos.

Na Praça Miranda Ribeiro, em Turiaçu, o oratório dedicado a São Jorge está localizado quase em frente à igreja Batista.  Uma referência para todo devoto que deve conviver de forma ordeira e democrática com quaisquer símbolos religiosos, aceitando o outro, respeitando o próximo, praticando princípios básicos da busca pela harmonia, sem a estupidez e intolerância que afloraram nos últimos anos, endureceram corações comprometendo a essência da fé, qualquer fé.

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Carioca, arquiteto graduado pela FAU-UFRJ, professor, incluindo a FAU-UFRJ, no Departamento de História e Teoria. Autor de pesquisas e projetos de restauração e revitalização do patrimônio cultural. . Consultor, palestrante, coautor de vários livros, além de diversos artigos e entrevistas em periódicos e participação regular em congressos e seminários sobre Patrimônio Cultural e Arquitetura no Brasil.
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