Aqueles com mais de sessenta anos, como eu, não se surpreenderão com o termo “cinema poeira” ou simplesmente “poeirinha”. Por isso, vale o aviso para quem considera uma mera manifestação saudosista: Não leia! Prefira o filme vencedor do Oscar 2023. Contemporâneo, o que não indica qualidade.
Tratamos aqui de uma denominação carinhosa para maioria, pejorativa para alguns, atribuída às pequenas e antigas salas de projeção distribuídas com generosidade por muitos e muitos bairros da cidade do Rio de Janeiro.
Naquelas salas escuras, muitos de nós aprendemos a amar o cinema, a pipoca saltando na bilheteria, o amendoim, drops Dulcora, meninas que esperavam as luzes se apagarem para tomar um lugar bem juntinho, dividindo o braço daquelas cadeiras de madeira, sem nenhum conforto. Afinal, era um poeirinha…
Naquele escurinho, braços roçavam-se, ombros aproximavam-se e talvez, aquele casal mais ousado trocasse um beijo furtivo, quase sempre com um olho na tela, todos em plena adolescência, hormônios em ebulição, disfarçando na saída, com vestes amarrotadas e rubor nas faces.
O encanto dessas salas foi abordado com muita sensibilidade e metalinguagem em filmes ao longo das décadas que assistiram à sua decadência, substituídas por qualquer coisa plex ou mark dos shopping centers.
São filmes saudosistas? Talvez, mas impregnados de encanto e reverência pela história de cada um e nossa relação com aqueles pequenos cinemas das esquinas de nossas vidas, que merecem ser vistos e revisitados: A última sessão de cinema (1971), Splendor (1989), Cinema Paradiso (1990), Cine Majestic (2001), Bastardos Inglórios (2009), Cine Holliúdy (2013), Império da Luz (2022).
O ato de ir ao cinema era libertador para muitos de nós, inclusive pela oportunidade única de assistir aos filmes proibidos ou a alguns que se tornariam clássicos, como Paixão dos Fortes, o primeiro que vi sozinho, no Palácio Vitória, muito modesto, apesar do nome, no bairro do Rocha.
Necessário registrar que a censura estabelecida nos certificados apresentados na tela antes da exibição era rigorosamente cumprida nos grandes cinemas, mas relevada pelos bilheteiros em nossos queridos poeiras, que fingiam acreditar que tínhamos os 16 ou 18 anos estampados nos cartazes, que poderia chegar a 21 anos!
A escala censora variava: Livre, 5, 14, 16, 18 e 21, gerando insólitos episódios de adolescentes pintando bigodes de rolha para ganhar alguns anos e assistir aos filmes proibidos, como o polêmico francês Os Amantes, ou os nacionais A Mulher de Todos ou Rifa-se uma Mulher.
Além disso, eram esses cinemas que exibiam filmes considerados B, ou grandes obras, após o sucesso no circuito principal da cidade, com o preço dos ingressos muito mais acessíveis, permitindo o luxo de comprar a inteira para não apresentar documentos ao porteiro, atitude nem sempre bem sucedida, devido à ameaça iminente da presença do temível Juiz de Menores, que jamais vi aparecer. Diferente de censores que interromperam a exibição de Sacco e Vanzetti, em 1971, pois tornou-se proibido pelos militares no poder. Estava naquele cinema, numa segunda feira, pois geralmente os filmes eram recolhidos após a primeira sessão. Dessa forma, alguns de nós poderíamos assistir a versão completa, o que seria logo modificado, ampliando-se controle e restrições.
Os poeiras eram uma categoria conhecida por todos, sem que ninguém soubesse a origem do nome, possivelmente devido à falta de manutenção adequada. Quase sempre encontrávamos algumas cadeiras de madeira quebradas, ventiladores (não contavam com ar condicionado) barulhentos, entrada de ruído e luz externas. Os projetores não eram os mais modernos e muitos filmes apresentavam manchas do tempo e cortes inusitados. A péssima qualidade do som, agravado em filmes nacionais, fortalecia uma antiga máxima que cinema brasileiro tinha o som ruim, o que nem sempre era verdadeiro.
Além disso, lendas assolavam os jovens frequentadores, incluindo até mesmo fantasmas nos antigos banheiros, que nem eram tão fantasmas assim, mas o mau cheiro era inesquecível.
A maioria dos edifícios era antiga, com pouca manutenção e fachadas sem grandes atrativos, bem diferentes de cinemas como o Roxy, em Copacabana, Carioca e Olinda, na Praça Saens Pena, os Metro (Tijuca, Passeio, Copacabana), Pathé, Odeon, Mascote, no Méier, Guaraci, em Rocha Miranda ou o moderno cinema Mauá, em Ramos, todos com primoroso acabamento externo e interno, cortinas, tapetes, hall confortável, ar condicionado e ótima iluminação indireta, um espetáculo à parte.
Por outro lado, nossos poeirinhas contavam com seus próprios “requisitos”, como cadeiras de madeira, ventiladores barulhentos, temidos banheiros voltados para a sala de projeção ou em sinistros corredores externos… Muitas vezes o filme era interrompido, demorando alguns minutos para ajustar o próximo rolo, ou o enquadramento falhava, cortando as legendas, provocando as vaias e assobios, necessitando a interferência do famigerado lanterninha, figura onipresentes nos grandes circuitos, que nos poeiras acumulava funções de porteiro, baleiro e fiscal de todo tipo de comportamento “inadequado” da plateia, incluindo atitudes de namorados mais ousados.
Circulando pelos bairros à procura de filmes proibidos, conhecíamos a cidade de ônibus ou trem e contamos com o privilégio de frequentar salas de todos os tamanhos e acabamentos, em busca da libertação que o cinema produz.
A cidade do Rio de Janeiro perdeu quase todos os seus cinemas de rua, com raras exceções que ainda resistem. A maioria absoluta mudou sua função original, transformando-se em templos, estacionamentos, hortomercados, comprometendo a própria memória e cultura urbana, que perde seu tempero com filmes exibidos em salas múltiplas em grandes shoppings.
Os mais antigos, como eu, conseguem entender que um filme fica indissoluvelmente ligado à sala de exibição, caso tenha deixado marcas naquele espectador.
Havia um ritual, definido pelo próprio projeto do cinema: a fachada convidativa, com seus cartazes e fotos de cena; bilheteria, bomboniere, antessala, o salão de projeção e o mundo mágico da tela que se desnudava das cortinas ao soar o sinal e o facho de luz iniciava a projeção: trailers, canal 100, a vinheta característica. Enfim, o filme.
Ao final, a plateia deixava a sala refletindo nos semblantes as emoções daquele universo à parte e ganhava as ruas, sem os feéricos estímulos das vitrines das lojas imediatamente contiguas às saídas, dentro das galerias iluminadas, irradiando odores convidativos de guloseimas.
Os grandes produtores cinematográficos diversificam suas atividades, atendendo aos novos canais exclusivos para TVs, mas também promovem inovações tecnológicas no som, imagem, sentidos para tentar manter as salas abertas, com seus ingressos vendidos a preços tão proibitivos quanto os produtos oferecidos nas bombonieres high tech.
Enquanto isso, circulamos pelos bairros e deixemos nossa memória saudosista revisitar cenários definitivamente indeléveis para construção de nossa identidade, estampados naquelas fachadas de nossa adolescência e juventude:
Alvorada (Copacabana), Bonsucesso (idem), Botafogo (idem), Cachambi (idem), Carmoly (Praça do Carmo), Higienópolis (idem), Jussara (Jardim Botânico), Marajá (São Francisco Xavier), Madrid (Tijuca), Orly (Centro), Palácio Vitória (Rocha), Paraíso (Bonsucesso), Quintino (idem), Riachuelo (idem), Rio Branco (Praça XI), Santo Afonso (Tijuca), São Geraldo (Olaria), São Jorge (Cachambi), Tijuquinha (Praça Saens Pena), Todinho (Todos os Santos), Vaz Lobo (idem) e tantos outros…
Cine Jussara, Jardim Botânico
Muito obrigado pelas matinês com pipocas quase vencidas. Pelo Mentex ou chicletes Adams em caixinhas . Pelos pacotes de balas boneco cor-de-rosa. Pelo cheiro de mofo dos tapetes sem sol.
Muito obrigado pelos filmes tristes, pelas comédias, pelos bang-bangs. Especialmente por aquela sessão de cinema das cinco, por beijar a menina e deixar a saudade na camisa toda suja de batom, como cantava Belchior.