William Bittar: Rio de Outros Carnavais

Colunista do DIÁRIO DO RIO fala sobre a história do Carnaval carioca

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Clube de Frevo “Os Lenhadores”, fev.1959. Arquivo Nacional

Advertência: O texto a seguir contém descrições e opiniões impregnadas de pura nostalgia e saudosismo, portanto deve ser evitado por todos aqueles que se consideram modernos ou progressistas de última hora.

A tradição ensina que o Carnaval, apesar das aparências, é uma festa cristã, definida durante o Concílio de Niceia, em 325, quando as autoridades católicas estabeleceram que a Páscoa seria celebrada no primeiro domingo após a primeira lua cheia depois do equinócio de outono, no caso do hemisfério sul. Dois dias antes, a Sexta Feira da Paixão e sete domingos retroativos ocorreria o Domingo de Carnaval.

Consultando a Encyclopaedia Britannica, aprendemos que o Carnaval pode ser originário de festividades católicas romanas, antecipando a Quaresma, quando os devotos iriam se abster do consumo de carne.  O vocábulo carnaval viria do latim carnelevarium, que significava retirar a carne.

Outra versão associa a festa às bacanais romanas, realizadas em homenagem ao deus do vinho, Baco, que muitos relacionavam à embriaguez e aos prazeres carnais.

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No Brasil, é provável sua chegada em meados do século XVII, na cidade do Rio de Janeiro, através da prática do entrudo, termo originado do latim introitos, possivelmente uma forma de indicar o início das solenidades que viriam com a Quaresma.

Muitas vezes era uma prática suja e violenta, na qual as classes mais baixas atiravam-se ovos, farinha, lama, até mesmo restos de comida e urina. Em algumas vilas, até mesmo famílias mais abastadas participavam de suas janelas, despejando baldes de água suja nos passantes. Reproduzia-se o antigo hábito de atirar as imundícies da residência nas ruas, após o aviso de “água vai”, também comum em Portugal.

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O entrudo na Rua do Ouvidor, 1884.
Angelo Agostini, Biblioteca Nacional.

A partir do período imperial, o entrudo recebeu diversas formas de censura, inclusive com ameaças de criminalização, cerceando a liberdade das manifestações populares. Enquanto isso, surgiam os bailes de carnaval nos salões de clubes e teatros para segmentos das classes mais altas, animados por conhecidas orquestras, por vezes reproduzindo modelos europeus, com suas luxuosas máscaras e algumas fantasias.

Muitos bailes atravessaram os séculos, palcos de desfiles e cenários de ostentação, como Copacabana Palace, Hotel Glória, clubes famosos, como o High Life Club, na rua Santo Amaro, que resistiu até onde pode à passagem do tempo.

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Correio da Manhã, fev 1932

Em breve, a folia das elites sairia dos salões, ocupando as ruas, com a criação das primeiras Sociedades, em 1855, como o Congresso das Sumidades Carnavalescas e a Sociedade Veneziana.

William Bittar: Rio de Outros Carnavais
Carro Alegórico dos Tenentes do Diabo, 1913

Acervo Particular

A população insistiu nas suas manifestações momescas, procurando adaptação às restrições da ordem pública. Surgiram os cordões, substituindo os conhecido zé-pereiras, no final do século XIX, como o Estrela da Aurora, os Teimosos Carnavalescos e o famoso Rosa de Ouro, citado por Chiquinha Gonzaga no seu “Ô Abre Alas”.  Nada mais eram do que um grupo de foliões fantasiados, eventualmente conduzidos por um mestre e acompanhados por instrumentos de sopro e percussão. Transformado em um “megabloco”, o tradicional Cordão da Bola Preta, fundado em 1918, arrasta multidões pelo centro do Rio nos sábados de carnaval, em nada semelhante àquelas manifestações originais.

Os ranchos carnavalescos, outra manifestação popular carioca, era um desfile organizado como um cortejo, com presença de um rei e rainha, acompanhados por uma marcha-rancho, com instrumental de corda e sopro. A história oficial atribui sua criação ao pernambucano Hilário Jovino Ferreira, quando fundou, em 1893, o Rancho Reis de Ouro, originário do Dois de Ouro, da Pedra do Sal, reduto da Pequena África. No entanto, a mais famosa agremiação foi o Ameno Resedá, fundado em 1907, rancho carnavalesco que ganhou prestígio inclusive com o presidente da República, Hermes da Fonseca, que o convidou para uma visita ao Palácio do Catete, saindo de lá em desfile pelas ruas do bairro. Consegui o feito de desfilar com as Grandes Sociedades, em 1914, juntos de figuras notáveis da sociedade carioca.

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Rancho Ameno Resedá – painel
Domínio público

As Grandes Sociedades, como foram denominadas, integraram a programação oficial do carnaval do Rio de Janeiro com o desfile luxuoso de seus carros até o final da década de 1960, geralmente fechando a terça-feira gorda, dividindo a atenção com o clubes de frevo, que desfilavam no sábado, as Escolas de Samba, no domingo de carnaval, enquanto os Ranchos ficavam com a segunda-feira, todos com grande apelo popular.

Aqueles rejeitados dos desfiles oficiais participavam dos “blocos de sujos”, com suas fantasias improvisadas ou muito simples, por vezes invertendo papeis sexuais em seus trajes, prática que atravessou décadas, apesar de tempos de patrulhas politicamente corretas e entediantes.

Com as grandes reformas urbanas do Rio de Janeiro, a recém-inaugurada Avenida Central tornou-se o cenário preferido de algumas manifestações do carnaval, além dos desfiles oficiais. Ali acontecia o corso, composto pelo desfile de automóveis conversíveis, de onde jovens atiravam flores nos foliões nas calçadas. Muitas recebiam limões de cheiro (pequenos recipientes de cera fina, cheio de água de colônia), que estouravam no contato com o corpo. Uma versão mais comportada do entrudo, que continuava em outros cantos da cidade.

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O corso na Avenida Central, 1910.
Malta: o fotógrafo do Rio Antigo, 1983. Rio Gráfica

O final da década de 1920 assistiu ao nascimento de uma instituição carioca: as Escolas de Samba, conforme matéria de Larissa Ventura (https://diariodorio.com/deixa-falar-a-primeira-escola-de-samba-do-brasil-surgiu-no-estacio-3/), neste periódico, em fevereiro de 2023.

Com o surgimento de diversas agremiações pela cidade, o jornalista Mário Filho (o mesmo que defendeu a criação do estádio do Maracanã) organizou, em 1932, o primeiro desfile oficial. 

Ainda que filha caçula das instituições carnavalescas, pouco a pouco as Escolas de Samba tornaram-se protagonistas do carnaval carioca, provavelmente as grandes responsáveis pela mercantilização da festa como produto de consumo de exportação.

Aquela tradição cultural brasileira, nascida nas camadas populares no período colonial, transformou-se em lucrativo negócio nos setores do turismo e entretenimento, movimentando bilhões de reais.

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Revista Manchete, 1963
Acervo BN

Em diversos casos, devido aos altos preços cobrados para participar de um simples bloco, como os abadás baianos, uma maioria representativa fica fora dos cordões, dos bailes e dos desfiles, que ajudaram a produzir.

No caso da cidade do Rio de Janeiro, assistimos a um movimento frenético para estender os festejos muito além de seus objetivos originais, os três ou quatro dias de folia, de origem secular, associados principalmente ao catolicismo.

São associações de blocos diversas, várias ligas de escolas de samba, megablocos que nada mais são do que grandes shows ao ar livre, muitos deles em nada associados à essência do carnaval, que acontecem antes, durante e depois, numa avidez de perpetuar o lucro, atrair mais e mais turistas, causando danos ao patrimônio cultural, até mesmo alterando-se o calendário do campeonato carioca para atrair público para o Maracanã num sábado de carnaval.

O leitor que aqui chegou foi devidamente prevenido da nostalgia do texto que simplesmente recorda uma cidade que brincava o carnaval de sua maneira singular. Era isso que lhe conferia brilho e notoriedade.

Saudades sim, de outros carnavais, da melancolia da quarta-feira de cinzas, o início da Quaresma com todas as suas implicações, o bloco Chave de Ouro, o coração aguardando um próximo carnaval, que duraria apenas quatro dias gordos, num moto contínuo de renovação, aguardando o Baile da Vitória do sábado de Aleluia, prenúncio de futuras folias.

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Carioca, arquiteto graduado pela FAU-UFRJ, professor, incluindo a FAU-UFRJ, no Departamento de História e Teoria. Autor de pesquisas e projetos de restauração e revitalização do patrimônio cultural. . Consultor, palestrante, coautor de vários livros, além de diversos artigos e entrevistas em periódicos e participação regular em congressos e seminários sobre Patrimônio Cultural e Arquitetura no Brasil.
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