William Bittar: Roteiro gastronômico-arquitetônico pelas confeitarias do Centro do Rio

Colunista do DIÁRIO DO RIO fala sobre a viagem no tempo por espaços de épocas distintas que as confeitarias do Centro podem proporcionar

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Interior da Confeitaria Colombo, na região central do Rio de Janeiro - Foto: Divulgação

A cidade do Rio de Janeiro conta com diversos roteiros culturais capazes de propiciar olhares singulares sobre sua história, sob diversos matizes, abrangendo seu patrimônio material e imaterial.

A segunda metade do século XIX assistiu significativas transformações na vida urbana carioca, principalmente pela valorização do papel feminino na sociedade que, depois de longo tempo de quase clausura, submetido ao jugo masculino, finalmente ocupava as ruas.

A vida social da mulher, antes restrita ao ambiente doméstico ou eventuais eventos, quase sempre associados aos cultos religiosos, abriu seus horizontes, modificando definitivamente a fisionomia da cidade, incluindo ou modificando programas de arquitetura, como teatros, sorveterias, leiterias, confeitarias, que abandonavam a presença quase exclusiva masculina.

Os parques públicos, que recebiam a visita de famílias, adotando uma prática comum na Europa, recebiam projetos paisagísticos, inspirado nos jardins ingleses.

Entre esses muitos estabelecimentos, as confeitarias tornaram-se uma grande atração, verdadeiro cenário de novidades da moda e de guloseimas, distribuindo-se inicialmente, pela região central da cidade.

Muitas já se foram engolfadas pelo progresso, mas algumas resistem, possibilitando uma viagem arquitetônica por edifícios diversos, com interiores de gostos singulares, associando o partido arquitetônico exterior e interior aos acepipes que ali ainda podem ser degustados.

Um curto percurso entre dois dos mais tradicionais largos da cidade, São Francisco e Carioca, nos remete a uma viagem no tempo por espaços de épocas distintas, revelados na ornamentação de seus salões e no cardápio oferecido.

Na esquina da Rua Uruguaiana com Sete de Setembro está a Casa Cavé, cronologicamente a mais antiga confeitaria da cidade ainda em funcionamento, fundada em 1860 pelo imigrante francês Auguste Cavé, que administrou o negócio até 1922.  O edifício conta com tombamento estadual desde 1987.

A fachada, disposta no cruzamento das antigas Rua da Vala e Rua do Cano, apresenta um repertório eclético, influenciado pelo renascimento francês, valorizado por uma discreta mansarda implantada no vértice, arrematando os dois pavimentos.

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Casa Cavé com sua fachada eclética

Acervo Diário do Rio

Internamente, a história da confeitaria revela uma grande reforma ocorrida após a mudança de proprietário, que transformou o salão principal em um interessante ambiente art-déco, presente no desenho geometrizado da planta, mobiliário e placas vidro, desenvolvidos pelo artista espanhol Domenech Colón.

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Salão de Chá da Casa Cavé com ornamentação art-déco

Acervo Particular

A elegância do seu espaço, a qualidade e apresentação de seus salgados e sorvetes, oferecidos em taças também geometrizadas, completando uma verdadeira obra de arte déco, encantavam a sociedade carioca, que tornou-se assídua frequentadora do local, disputando a supremacia com a quase vizinha e tradicionalíssima Confeitaria Colombo.

Após algumas mudanças de endereço e de proprietário, a Casa Cavé retornou à sua esquina tradicional, aguardando os novos frequentadores a degustar suas iguarias, entre elas o famoso refresco de groselha, os pasteis e os sorvetes elaborados.

A menos de 100 metros, numa curtíssima caminhada, o visitante chega a um sobrado de quatro pavimentos, localizado na Rua Gonçalves Dias, antiga Rua dos Latoeiros, que testemunhou a prisão do Tiradentes no final do século XVIII.

A largura da via sequer permite a plena visualização de suas fachadas, mas uma placa perpendicular à testada indica que ali está a Colombo, talvez a mais tradicional Confeitaria do Rio ainda em pleno funcionamento. O pavimento térreo é valorizado pelas vitrines curvas sob andares superiores que mantém o ecletismo adotado no final do século XIX para muitas edificações. O conjunto foi tombado definitivamente pelo estado desde 1983.

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Fachada Confeitaria Colombo – AGCRJ

Em 18 de setembro de 1894, o Diário de Notícias registrava a inauguração da confeitaria, propriedade dos senhores Meirelles & Lebrão:

“A rua Gonçalves Dias cada vez mais se adorna com bellos prédios e estabelecimentos commerciaes dignos de uma grande capital e devido aos esforços da iniciativa particular, que muito nos auxilia no nosso progresso.”

Nascia um dos estabelecimentos mais tradicionais da cidade, passarela da moda, tornando-se personagem da literatura, presente nas páginas de Machado de Assis, Jorge Amado e tantos outros poetas e compositores.

O luxo de seus salões tornou-a um verdadeiro ícone da Belle Époque, a materialização de Paris nos trópicos, refletida em seus espelhos belgas e mobiliário com influência Luiz XVI e art-nouveau, produzidos pelo artesão Acacio Borsoi.

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Confeitaria Colombo – Salão térreo

http://www.confeitariacolombo.com.br/

Em 1922, provavelmente para os festejos do Centenário da Independência, recebeu uma reforma, acrescentando o salão de chá no pavimento superior, que se abre para uma claraboia colorida, que também ilumina o térreo com suas mesas com tampos de mármore (originalmente eram de opalina), sobre pés de ferro, com desenho art-nouveau.

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Confeitaria Colombo – Salão Superior AGCRJ

Desde sua fundação, a Colombo tornou-se reduto de intelectuais e políticos, praticamente uma embaixada cultural da cidade, tradição que não resistiu ao progresso e às mudanças políticas que transferiram a capital para Brasília, em 1960.

Após problemas econômicos e mudanças de proprietário, a confeitaria continua em funcionamento, aproveitando suas histórias e o encantamento que ainda exerce em seus frequentadores habituais e visitantes ocasionais.

Pouco mais de 200 metros adiante, adentramos na Rua do Ouvidor, na direção do Largo de São Francisco. Quase no limite daquele largo foi construído, no início da década de 1940, um edifício de quatro pavimentos, fachada com elementos art-déco, muito simplificados. No térreo foi inaugurada, em 1942, a Confeitaria Manon, inicialmente administrada por imigrantes portugueses. O bem foi tombado pelo município em 1993.

Sua fachada não apresenta um repertório artisticamente relevante, pois abre-se integralmente para o estreito passeio da rua e ostenta seu letreiro distribuído por todo o acesso. Sua ornamentação interior torna-se o principal atrativo, em conjunto com suas tradicionais vitrines de pães, doces e salgados, com destaque para o famoso madrilenho, um pequeno pão doce com creme, goiabada e açúcar, exposto em conjunto com seus pasteis de Belém.

Seus interiores, inicialmente art-déco, conforme revelam algumas antigas imagens, preservou pisos, espelhos e alguns detalhes, mas recebeu uma importante reforma, noticiada na Revista Vida Doméstica de dezembro de 1952, incorporando elementos característicos daquele período, como alguns móveis pés-de-palito, iluminação indireta e letreiros em neon e o movimento de amebas em seus tetos rebaixados, consolidando a imagem junto à população que ainda frequenta seus salões para cafés ou refeições.

“Estabelecimento já de linhas modernas, em suas novas instalações, usou a Confeitaria Manon de todos os recursos de bom gosto das artes decorativas, dando à sua nova e ampla dependência um aspecto moderno e de requintado tom, preenchendo ao mesmo tempo a lacuna que se fazia sentir em tão movimentada rua, onde agora, principalmente, o elemento feminino pode fazer os seus lanches no ambiente agradável de uma casa justamente famosa pela excelência dos seus serviços.”

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Confeitaria Manon – Interior modernista 

Acervo particular

Em pouco mais de trezentos metros, o transeunte pode percorrer 100 anos de história da arquitetura, além da degustação de iguarias tradicionais como sabores do Rio, em ordem cronológica pela ornamentação interior:   os camarões empanados com catupiry e torteletes da Colombo, resgatando a Belle Époque; os pasteis e sorvetes da Cavé, respirando a década de 1920; um café com os madrilenhos da Manon, viajando até os anos 1950… 

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Madrilenhos da Manon

Uma viagem por ruas estreitas, sobrados centenários e torres de vidro contemporâneas, onde o passado convive com o futuro, numa cidade camaleônica, que nem sempre sabe conviver com o potencial de sua própria história, às vezes incentivadas por iniciativas oficiais equivocadas, enquanto muita coisa resiste diante dos olhos de quem quiser ver.

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Carioca, arquiteto graduado pela FAU-UFRJ, professor, incluindo a FAU-UFRJ, no Departamento de História e Teoria. Autor de pesquisas e projetos de restauração e revitalização do patrimônio cultural. . Consultor, palestrante, coautor de vários livros, além de diversos artigos e entrevistas em periódicos e participação regular em congressos e seminários sobre Patrimônio Cultural e Arquitetura no Brasil.

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