William Bittar: Sobre a igreja de Nossa Senhora da Lapa dos Mercadores do Rio de Janeiro

O colunista William Bittar fala sobre a bonita Igreja da Lapa dos Mercadores, que se encontra fechada há anos no Centro do Rio de Janeiro

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A histórica Igreja da Lapa dos Mercadores, na rua do Ouvidor, 35, em ângulo nada usual, mas mesmo assim, lindo exemplo de arquitetura do século XVIII - Foto: Daniel Martins/Diário do Rio

A devoção a Nossa Senhora da Lapa, segundo a tradição mais difundida, iniciou-se em Portugal, ao norte, na região de Sernacelhe, ao final do século X, durante uma invasão moura. Na ocasião, o comandante das tropas, Al-Mansur, atacou um mosteiro e promoveu o sacrifício de muitas religiosas ali internas.

As poucas freiras que escaparam se abrigaram em uma gruta (lapa) nas imediações, onde colocaram uma imagem de Nossa Senhora que conseguiram salvar dos invasores.

A tradição indica que ela permaneceu oculta na gruta por quase quinhentos anos e foi encontrada em 1498 por uma jovem pastora, Joana, muda de nascença. Encantada pela beleza da escultura, tomando-a por uma boneca, guardou-a entre seus pertences para suas brincadeiras infantis.

Observando o comportamento da filha, o excesso de flores em sua cesta e a demasiada calma das ovelhas, a mãe, num impulso de raiva, atirou aquela boneca ao fogo. Repentinamente, a menina, muda de nascença, exclamou: “Não, minha mãe! É Nossa Senhora!” e aquele braço destrutivo ficou paralisado. Ambas quedaram-se em preces, a jovem pastora continuou a falar e aquele membro violento ficou curado.

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Diante do milagre, iniciava-se ali a devoção e a comunidade construiu uma modesta capela para abrigar a imagem de Nossa Senhora, originando outro episódio. O clero local decidiu transferi-la para a igreja paroquial, mas sempre que assim o fazia, a imagem desaparecia e retornava à sua ermida original.

Naquele local, na freguesia de Quintela, Sernancelhe, em Portugal, foi edificado o Santuário de Nossa Senhora da Lapa, depois conhecido como residência da Companhia de Jesus, que construiu uma nova igreja no século XVIII, local de muitas peregrinações para visitar o rochedo milagroso com a imagem original, dispostos na capela-mor.

A devoção difundiu-se por Portugal e Espanha, chegando ao Brasil através dos padres jesuítas, zeladores da Lapa, por concessão de D. Sebastião e se difundiu por toda a colônia lusa.

Em Salvador, na primeira metade do século XVIII, João de Miranda Ribeiro, um devoto, teria construído a primeira capela dedicada a Nossa Senhora da Lapa, como ex-voto por uma graça atendida. Este edifício originou o Convento de Nossa Senhora da Conceição da Lapa, o segundo conjunto feminino mais antigo implantado no Brasil, inaugurado em 1744, dedicado às Irmãs Franciscanas Concepcionistas.

No Rio de Janeiro, a devoção se manifestou com a construção de um oratório, num beco próximo à igreja de Santa Cruz dos Militares, em 1743. Aqui pertinho da sede do DIÁRIO DO RIO. Quatro anos depois, os comerciantes responsáveis por aquele discreto nicho reuniram-se para fundação de uma irmandade católica e a construção de um templo dedicado a Nossa Senhora da Lapa dos Mercadores, padroeira daquela confraria. Essa atitude que gerou algumas desavenças entre os mascates e caixeiros, por vezes necessitando de intervenção policial, pois estes últimos, com menos recursos, insistiram em permanecer junto ao antigo oratório, enquanto os mascates, já denominados mercadores, afastando o nome pejorativo, frequentavam o edifício recém-inaugurado.

Em 04 de novembro de 1747 foi expedida a autorização para construção da igreja e, no mês seguinte, lançadas suas fundações. As obras foram demoradas, executadas em etapas, conforme a arrecadação permitia. Em 1750, o espaço para culto já permitiu sua consagração, mas os trabalhos prosseguiram até sua conclusão, em 1766.

Ao longo do século XIX, o edifício continuou a receber alterações, principalmente na fachada principal, que adotou um repertório neoclássico.

A fachada

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Fonte: Revista do Iphan, 1984

As obras realizadas ao longo do século XIX modificaram a fachada original, da qual ainda não foi localizada a documentação visual. Surgiu o partido que chegou à contemporaneidade, composto por três pavimentos: o térreo com três arcos de cantaria, o pavimento superior, com três portas providas de balcões balaustrados e uma torre sineira central única, sobre um frontão triangular no eixo da composição. Completam a ornamentação um medalhão em lioz, com a representação da coroação de Nossa Senhora, sobre a porta central do coro,  duas imagens em nichos simétricos sobre as duas outras janelas e outras duas, arrematando os cunhais.

A tradição e algumas descrições indicam que havia uma escultura representando a Religião, arrematando a torre central, que foi atingida por uma bala de canhão durante a Revolta da Armada, em 1893. Mesmo despencando cerca de 25 metros, a peça ficou praticamente intacta, fato considerado milagroso na cultura popular, que continua visitando o projétil e a imagem em exposição na sacristia.

O jornal “O Paiz”, de 26 de setembro de 1893, noticiava em sua primeira página:

“Eram 5 horas e 10 minutos da tarde, pouco mais ou menos, quando ouvimos o estampido horrível da artilheria do Aquidaban, que desde muito cedo se amarrara a uma boia atrás da ilha das Cobras, dominando o canal entre essa ilha e o arsenal de marinha.

O projectil desse disparo veiu a cair à rua do Ouvidor, sobre a cúpula da torre da igreja da Lapa dos Mercadores, destruindo essa parte do templo e os seus estilhaços arrombaram as paredes do prédio n. 15 da mesma rua, deixando o edifício em ruínas e fora do prumo e alinhamento.”

A torre, erguida em 1880, foi reconstruída em 1895, guardando a aparência que marca a fachada da igreja no eixo da rua dos Mercadores. Em sua lateral, voltada para a Travessa do Comércio, existe uma elegante portada em cantaria arrematada por uma sobreverga curvilínea.

Segundo o jornal “O Globo”, de 13 de abril de 1965, esta igreja foi a primeira do Rio de Janeiro a possuir um carrilhão composto por 12 sinos fundidos em Portugal, que também foram atingidos durante a Revolta da Armada.

No final do século XX, o templo permaneceu fechado à visitação devido a problemas de conservação. Em 1999 foi reaberto, devolvido restaurado – com recursos públicos – aos fiéis e à população, que puderam novamente contemplar a beleza daquele conjunto arquitetônico. Hoje, se encontra em infaustas condições. A irmandade que leva o nome da Igreja empobreceu, tomada por um grupo que não permitiu a entrada de novos irmãos, e parece ter se interessado cada vez menos em sua conservação. Hoje está fechada já há alguns anos e até o momento o templo segue deteriorado e fechado, tendo sido interditado pela defesa civil meses atrás; um bloco de sua fachada caiu recentemente na rua do Ouvidor.

A planta

Concebida em meados do século XVIII, substituindo o oratório primitivo, a igreja adotou um partido original, diferente das tradicionais naves retangulares. À feição de outros exemplares com plantas movimentadas, trata-se de edifício com pequenas dimensões, composto por uma nave elíptica, conforme a igreja de São Pedro dos Clérigos, demolida na década de 1940. Antecedendo o salão principal, existe uma pequena galilé, sob o coro, com três arcos plenos voltados para o exterior, permitindo a transição entre o público e o religioso. Aos fundos, desenvolve-se a capela-mor com a imagem da padroeira, iluminada por um pequeno zimbório, semelhante àquele sobre a nave principal.

O interior

Certamente objeto de constantes modificações financiadas pela Irmandade, a ornamentação interior procurava seguir alguns modelos vigentes em templos com maior importância social. Ao longo das décadas, a partir do final do século XVIII, recebeu elementos de filiação rococó em sua talha de madeira, executados por Antonio de Pádua e Castro, que trabalhou nos interiores da vizinha igreja da Ordem Terceira do Carmo. Posteriormente, foram acrescidos ornatos em estuque, realizados pro Antonio Alves Meira.

Os tetos curvilíneos, assim como as paredes da nave, recebem tratamento pictórico com cores vivas, ressaltados as representações religiosas figurativas, produzindo um conjunto único na arquitetura religiosa do Rio de Janeiro.

Em 18 de janeiro de 2020, a coluna de Ancelmo Gois, no Globo, noticiava que “A pequena joia do patrimônio histórico brasileiro não está sobrevivendo ao abandono”. Na ocasião, a matéria registrava “inúmeras infiltrações, alvenaria danificada por raízes e plantas e paredes descascadas. A precariedade atinge também a documentação.

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Carioca, arquiteto graduado pela FAU-UFRJ, professor, incluindo a FAU-UFRJ, no Departamento de História e Teoria. Autor de pesquisas e projetos de restauração e revitalização do patrimônio cultural. . Consultor, palestrante, coautor de vários livros, além de diversos artigos e entrevistas em periódicos e participação regular em congressos e seminários sobre Patrimônio Cultural e Arquitetura no Brasil.
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