William Bittar: Sobre becos e travessas do Rio de Janeiro

Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte? - O que vejo é o beco. Manuel Bandeira

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Beco da Música – A. Malta - AGRJ

No último domingo, Lucio Bulhões um querido amigo de longas datas, médico em Mato Grosso do Sul, comentou sobre os antigos becos do Rio de Janeiro, numa lírica frase: uma linda assinatura do descontrole da formação urbanística da cidade. Surgia o mote para esta coluna.

Podemos considerar, de uma forma geral, que a cidade do Rio de Janeiro surgiu e se desenvolveu por essas vielas. Afinal, os dicionários indicam que beco é uma rua estreita e curta, por vezes sem saída; ruela; travessa.

Provavelmente foi uma rua-travessa a primeira via da cidade, aos pés do Morro Cara-de-Cão, na Urca; logo após, ruelas, becos e ladeiras subiam e desciam o Morro do Castelo; becos e vielas, entre morros e charcos, definiam novos caminhos no núcleo habitado que se espraiava na várzea junto ao Terreiro do Carmo.

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Quando a cidade foi transferida para o morro do Castelo, em 1567, ali instalando a igreja de São Sebastião e a Câmara, ladeiras íngremes para onde convergiam becos, desenhavam-se para promover a ligação com a várzea vizinha e com o porto. Á feição de núcleos medievais ou até mesmo do sítio mais antigo de Lisboa, havia o crescimento espontâneo, irregular, com ruas estreitas e sinuosas galgando as fraldas da elevação.

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Provavelmente, só a partir do século XVIII, com os lucros auferidos pelo ouro que circulava no seu porto, o Rio de Janeiro recebeu um simulacro de planejamento em quadras, limitado, no entanto, por sua geografia singular: colinas muito próximas, limítrofes de charcos e alagados, definindo a várzea junto ao mar. Ainda não foi possível a implantação de um traçado regular, como ocorrera com cidades na América hispânica, ou algumas delas criadas ou modificadas pelas invasões estrangeiras, como São Luiz ou Recife.

A fusão destas tradições medievo-renascentistas produziu um modelo híbrido, alternando quadras regulares com vias sinuosas, vielas, travessas sem saída, cenário propício para a implantação de diversos becos.

Muitos deles surgiram na região central, alguns desaparecidos por sucessivas reformas urbanas. Era a força do progresso ou um progresso pela força. Para os lados da Misericórdia estavam Cotovelo, Fidalga, Ferreiros, Moura, Batalha e Música, este último sobrevivente do século XVI, junto à Praça do Expedicionário, curiosamente aos fundos do Museu da Imagem e do Som. No entanto, sua denominação decorre dos ensaios promovidos pela banda do Regimento do Moura, num antigo edifício administrativo.

Luiz Edmundo, em sua obra O Rio de Janeiro do meu tempo, de 1938, em sua página 107, descreve alguns desse antigos becos e vielas originários do período colonial: As ruelas que se multiplicam para os lados da Misericórdia – Cotovelo, Fidalga, Ferreiros, Música, Moura e Batalha – são estreitas, com pouco mais de metro e meio de largura. São sulcos tenebrosos que cheiram a mofo, a pau-de-galinheiro, a sardinha frita e suor humano.


Mais adiante, quatro logradouros singulares: Paço, Barbeiros, Cancelas, e Rosário. O beco do Paço foi destruído quando da abertura da rua Erasmo Braga, restando uma travessa que herdou seu nome, aos fundos da igreja de São José. Em nossa caminhada podemos incluir uma viela, à feição de beco, onde funciona a redação deste Diário: a Travessa do Comércio, com acesso sob o Arco do Teles,
habitado por personagens diversos como Carmem Miranda ou assombrado pelo fantasma de Bárbara dos Prazeres. Este logradouro, implantado nos setecentos, mantém a configuração da cidade colonial, ainda que suas fachadas se apresentem modificadas no século XIX e o século XX se encarregou de alterar sua volumetria, plantando torres por trás do alinhamento original.

Seguindo pela rua Primeiro de Março, antiga rua Direita, na direção da Candelária, chegamos ao beco dos Barbeiros, que liga esta via à rua do Carmo. Foi aberto pela Irmandade do Carmo e permanece pavimentado com blocos de pedra, caimento central e largura das vielas coloniais. Ali estabeleceram-se barbeiros ambulantes, pretos alforriados, documentados por Debret, que consagrou o nome
local. A poucos metros, paralelamente desenvolve-se o estreito beco do Carmo, junto à igreja da Ordem Terceira. Destaca-se a presença do oratório de Nossa Senhora da Boa Esperança, no final da ruela, o único que restou na cidade.

O beco das Cancelas é considerado a menor e mais estreita rua do Rio, com três metros de largura e vinte e oito de extensão, entre as ruas Buenos Aires, antiga Hospício, e do Rosário, diante da qual se ergue a igreja do mesmo nome. Ali, cancelas limitavam a circulação e contribuíram para sua denominação. Junto à Praça Monte Castelo, aos fundos da igreja de Nossa Senhora do Rosário, resiste o beco de mesmo nome, onde ambulantes oferecem produtos a baixíssimo custo, nem sempre de origem legítima ou conhecida.


Para os lados da Lapa está o beco das Carmelitas, para o qual Manuel Bandeira escreveu seu Poema do Beco, quando morava na rua Morais e Vale, na Lapa, olhando a baía da Guanabara por aquele becozinho sujo, embaixo, onde vivia tanta gente pobre – lavadeiras e costureiras, fotógrafos do passeio Público, garçons de cafés, onde residiam rufiões, prostitutas, artistas e o lendário Madame Satã.

O século XX também contou com becos famosos, na zona sul da cidade, como da Fome e das Garrafas. O beco da Fome é uma ruela entre a avenida Princesa Isabel e a Prado Júnior, região noturna pulsante de Copacabana. Na década de 1950 se destacava pelo cardápio substancial, de preços convidativos, que saciavam a fome dos boêmios na madrugada, depois dos programas em muitas boates ou inferninhos locais.


A três quadras dali, uma travessa sem saída na rua Duvivier aglutinava, nas décadas de 1950 e 1960, alguns bares como Ma Griffe, Bacará, Little Club e Bottle’s, para muitos, berço da Bossa Nova. Devido ao barulho até a alta madrugada, conta a tradição, endossada pelo cronista Sérgio Porto, que os moradores atiravam garrafas nos ruidosos frequentadores, como Miéle e Bôscoli, ou Elis Regina, gerando o apelido que consagrou o local: Beco das Garrafas.

A rua Miguel Couto, no Centro, também recebeu a denominação de Beco das Sardinhas, uma referência aos bares daquele trecho fechado para veículos que oferecem o pescado regado à cerveja gelada, aplacando o cansaço de um dia de expediente.

A cidade pulsava com a vida circulando por suas artérias-becos de acontecimentos, transeuntes, estudantes, namorados, amantes, facínoras, gigolôs, falenas, assombrações. Vielas escuras e misteriosas, estreitas, impregnadas de odores e segredos, que pouco a pouco a luz elétrica se encarregou de clarear e um progresso autofágico continua a devorar.

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Carioca, arquiteto graduado pela FAU-UFRJ, professor, incluindo a FAU-UFRJ, no Departamento de História e Teoria. Autor de pesquisas e projetos de restauração e revitalização do patrimônio cultural. . Consultor, palestrante, coautor de vários livros, além de diversos artigos e entrevistas em periódicos e participação regular em congressos e seminários sobre Patrimônio Cultural e Arquitetura no Brasil.
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