William Bittar: Sobre os antigos ambulantes no Rio de Janeiro

Colunista do DIÁRIO DO RIO conta a história dos primeiros ambulantes da cidade

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Largo da Gloria – Henry Chamberlain, 1922 Brasiliana Iconográfica

Ambulantes, personagens tradicionais da vida urbana de tantas cidades brasileiras, cada vez mais se perdem nas nuvens da memória sexagenária pelas ruas de nossa infância.

Desde o período colonial, homens e mulheres circulavam pelas vielas quase desertas das vilas e arraiais, denominados “escravos de ganho” por seus senhores brancos.

Na prática, eram responsáveis por atividades remuneradas a céu aberto, porém o produto pecuniário era repassado ao “proprietário da peça de trabalho”, com valor previamente estabelecido, relacionado à quantidade do produto negociado.

Como se tratava de uma atividade com controle indireto, era possível guardar algum dinheiro através da elevação dos preços ou algum tipo de acréscimo quantitativo do oferecido, restando algum capital que, acumulado, possibilitava por vezes a obtenção de alforrias, devidamente indenizadas aos “proprietários” para conseguir a justa liberdade.

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Havia variedade nas vendas entre doces, refrescos, café torrado, frutas, palmitos, leite, carnes, galinha, peixes, carvão, capim para os animais. Também alguns serviços eram oferecidos, como barbeiros, sapateiros, estivadores ou aguadeiros.

Á medida que as vilas cresciam, principalmente a partir do ciclo do ouro no século XVIII, diversificavam os produtos e serviços oferecidos, muitos deles tornando- se estabelecimentos comerciais com endereço fixo e impostos correspondentes.

No Rio de Janeiro, presentes inicialmente na região central quando o fenômeno de urbanização surgia como uma avalanche, nos primeiros anos do século XX, distribuíram-se por todos os bairros, zona norte ou sul, povoando nossa imaginação com algumas histórias fantásticas inventadas e recontadas por nossas avós.

Nos subúrbios cariocas ainda é possível ouvir antigos pregões, cujos ecos soam cada vez em calçadas mais distantes: – Vassoureiro! Que nossas avós traduziam como uma ameaça para levar crianças acordadas no meio da tarde…- Pego criança que não quer dormir!, ou outras versões igualmente ameaçadoras, como o homem do saco, personagem mítico atribuído ao modesto garrafeiro.


Quase inexiste o assobio agudo do amolador de facas, que também consertava panelas. Este talvez fosse o preferido para incutir o terror nos pequenos mais travessos, pois ele chegava circunspecto, boné, vastos bigodes, apoiava a grande roda de amolar movida pelo pedal e emitia o som para chamar a clientela. Devido à sua habilidade com facas, certamente esquartejava crianças mal-educadas e as
levava, aos pedaços, naquele saco de aniagem. Versão humana para a temível carrocinha de cachorros, que capturava os caninos para fazer sabão, o que nos permitia recebê-los com vaias e até pedradas, impedindo-os de cumprir sua funesta tarefa.

Necessário diferenciar os reais ambulantes dos camelôs que os sucederam, principalmente após a Segunda Guerra Mundial, conforme noticiava o Correio da Manhã em 20 de janeiro de 1960.

Pela própria etimologia do termo, ambulante deriva diretamente do latim ambulare, que significa andar, caminhar, enquanto camelô, segundo algumas fontes, derivaria do francês, significando vender coisas, geralmente baratas que, por sua vez, viria do árabe khamlat, tecido rústico negociado aos gritos nas feiras orientais.

Portanto, o tradicional ambulante não se estabelecia em ponto fixo. Circulava pelas ruas, quase sempre a pé, entoando seus pregões a plenos pulmões. Eram vassoureiros, garrafeiros, carvoeiros, sorveteiros, funileiros, padeiros, verdureiros e tantos outros eiros que declamavam ou cantarolavam primitivos jingles, ou simplesmente tocavam o “tlac-tlac” com suas matracas, anunciando pirulitos de açúcar queimado em forma de cone ou as casquinhas bijus que se desfaziam nas mãos e na boca.

Nas praias cariocas, os ambulantes tornaram-se patrimônio cultural comercializando mate ou limonada gelada e os indefectíveis biscoitos Globo, caminhando pelas areias ardentes sob o sol inclemente de todas as estações. Nos estádios, além do mate, cafezinho e cachorros-quentes distribuídos pelas arquibancadas.


Como esquecer os ambulantes que se equilibram nos vagões dos trens, a vender de tudo, verdadeiros cabides humanos, tornando o preço baixo seu maior atrativo? A clientela, composta pelos ilustres passageiros, apesar da origem obscura dos produtos, compra chocolates, amendoins, biscoitos, refrigerantes, fones, porta- documentos, palavras-cruzadas, brinquedos… A utilização dos vales-transportes diminuiu sensivelmente a circulação de moeda, base dessa economia informal, que passou a aceitar o famigerado pix.


A era do automóvel atualizou as maneiras de apregoar, com caixas de som ou alto-falantes colocados sobre veículos desgastados pela ação do tempo. Curiosamente surgiram pregões “padronizados” pelos bairros onde ainda resistem: a camionete que compra ferro velho, ar condicionado velho, geladeira velha; pamonha, olha a pamonha fresquinha!; queijo minas da fazenda, manteiga, doce de leite….; olha o camarão, freguesa, acabou de pescar. Baratinho!; ovos da granja, freguesa! Cartela com trinta. A galinha chorou! Ovos jumbo, cartela com dez. Precinho especial! São peças gravadas, repetidas, sem a participação direta do antigo ambulante que criava seus próprios bordões. Sorvete especial! Quinze sabores… morango, abacaxi, coco, limão… Pera aí! Tão me chamando ali.

Sorvetinho, sorvetão
sorvetinho de tostão
Quem não tem um tostãozinho
Não toma sorvete, não!

Cinco séculos de colonização se passaram, mudaram sistemas políticos, modelos econômicos, mas o comércio ambulante ainda resiste, cumprindo seu papel de abastecimento. Mesmo na informalidade, continua a gerar empregos para sustentação mínima de milhões de famílias, tanto no Brasil como em países mais ricos.

Sem regulamentação, não contam com aposentadoria, assistência médica e social, férias e outros benefícios, escapando do controle da economia formal. A pé, de bicicletas, kombis, camionetes, continuam a deambular pelas ruas das cidades, entoando novos e antigos pregões.

Mesmo com alguns pontos de contato, diferem-se dos camelôs, que constituem outro segmento urbano, com características próprias, estabelecidos em pontos fixos de venda. Algumas vezes são contemplados pelo poder público com a concessão de espaços quase planejados, que procuram inseri-los na malha da cidade e aproximá-los a uma economia formal.

Enquanto isso, ainda ouvimos, ao longe, aquelas vozes originárias da infância, que sequer sabemos verdadeiras ou simples ecos que insistem em povoar a memória:

  • Gar-ra-fei-ro!; o tlac-tlac, tlac-tlac dos biscoitos; o pregão do xarope colorido cobrindo as escamas de gelo das raspadinhas baratas que adoçavam nossos olhos e paladares.

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Carioca, arquiteto graduado pela FAU-UFRJ, professor, incluindo a FAU-UFRJ, no Departamento de História e Teoria. Autor de pesquisas e projetos de restauração e revitalização do patrimônio cultural. . Consultor, palestrante, coautor de vários livros, além de diversos artigos e entrevistas em periódicos e participação regular em congressos e seminários sobre Patrimônio Cultural e Arquitetura no Brasil.
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