William Bittar: Um certo domingo e Pelé no gramado do Maracanã

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Ao meu pai

Pelos tantos jogos que assistimos juntos

Naquela manhã cinza de domingo, 31 de agosto de 1969, os principais jornais noticiavam, alguns em primeira página, que todos os ingressos das arquibancadas e camarotes estavam esgotados. Ainda existiam 35 mil para a Geral e alguns para categorias especiais.

No caso da cidade do Rio de Janeiro, o desespero dos torcedores aumentou, pois a transmissão de TV não foi autorizada.

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Naquela tarde, às 16 horas, haveria uma partida decisiva da seleção brasileira, que contava com Pelé e outras “feras” do Saldanha, contra a seleção do Paraguai. Decidia-se a vaga nas eliminatórias para a Copa do Mundo de 1970, no México, onde o Brasil se sagraria tricampeão, trazendo para sempre a Taça Jules Rimet, com um time simplesmente mágico.

Os 200 mil lugares do Maracanã jamais seriam suficientes para 90 milhões em ação, que se agarraram aos seus radinhos de pilha para acompanhar a partida.

No mesmo domingo, o Jockey Club realizava o Grande Prêmio Brasil, evento sempre muito concorrido com ampla cobertura da imprensa, ofuscado pelo último jogo do Brasil nas eliminatórias e pouco se noticiou sobre os trajes e chapéus elegantes do desfile das frequentadoras das pistas do hipódromo.

Nem mesmo a ausência anunciada do presidente Costa e Silva, que iria ao Jockey e não ao Maracanã, conseguiu disputar um lugar nas primeiras páginas dos jornais dominicais.

Tempos depois se revelaria que a “gripe forte” do presidente fora um acidente vascular cerebral, afastando-o do cargo, substituído por uma junta militar até seu falecimento em dezembro daquele mesmo ano.

Enquanto o AI-5 continuava agindo com suas perversas restrições, pessoas eram presas, desaparecidas. Em resposta, a luta armada realizava sequestros, como do embaixador norte americano Charles Elbrick, em setembro de 1969, além de outros representantes diplomáticos, ao longo dos anos seguintes.

No entanto, naquele domingo, todos os olhares e ouvidos estavam voltados para o Maracanã. Naquele fim de tarde, precedendo uma noite de lua cheia, de temperaturas amenas, o estádio abrigou o maior público pagante da história do futebol até então. Foram 183.341 espectadores, além de outros tantos incontáveis, que abarrotaram todas as dependências locais.

Arquibancadas era composta por amplos degraus de cimento, sem divisórias, exceção para o setor destinado à tribuna, no centro. Sob a inclinação da estrutura, dispunham-se as cadeiras e camarotes. Num plano imediatamente inferior e anterior, junto ao gramado, separado por um fosso de segurança, estava a geral, local mais acessível por apresentar os ingressos mais baratos e a pior visibilidade dos lances.

Naquele domingo de agosto, todos nós, os afortunados que conseguiram um ingresso, não conseguíamos conter a ansiedade. O almoço deveria ser antecipado. Era preciso planejar como chegar, mesmo sem as interdições que aconteceriam décadas depois. Não havia metrô. Os trens eram de má qualidade e a frota de ônibus, insuficiente, assim como os poucos estacionamentos disponíveis nas redondezas.

A maioria seguia até locais mais próximos e dali, em longas procissões, caminhava até os acessos: do Belini ou da UEG, que as denominações contemporâneas chamariam de Leste e Oeste, respectivamente.

Eu já havia assistido jogos com Pelé e muitos daqueles jogadores, porém em seus clubes. Era a primeira vez que presenciaria a seleção canarinho em um jogo oficial, com a presença do maior camisa 10 de todos os tempos.

Eu, um garoto de 13 anos, e meu pai, subimos pela rampa da antiga UEG e nos dirigimos para o lado esquerdo das cabines de rádio, para onde a seleção atacou no primeiro tempo. Todos os lugares foram preenchidos. Torcedores sentados nos degraus, apertados, enquanto outros ajeitavam-se transversalmente, entre os pés e as costas dos demais. Quase impossível a circulação dos vendedores de mate, biscoitos, cachorros-quentes ou o cafezinho. Mas bandeiras de quase todos os clubes ali estavam desfraldadas, intercaladas pelas verde-amarelas. Não era comum, em tempos de repressão, a utilização da bandeira oficial.

Aqueles que necessitassem uma visita ao banheiro, certamente não reencontraria seu lugar, ainda que “marcado”. Alguns se desequilibravam no trajeto e eram passados como carga por sobre as cabeças dos torcedores, até o guarda-corpo final. Outros, para manter seu posto, exoneravam suas bexigas aflitas nos copos de mate, atirando-os para baixo.

Afinal, eram muitas horas antes do início da partida, pois os portões foram abertos às 12h30 e nenhum jogo preliminar seria suficiente para acalmar os ânimos e a tensão pulsante em todos os lugares.

Pouco antes das 16 horas, os roucos alto-falantes iniciavam sua transmissão com o tradicional “a ADEG informa”, e começava a detalhar a tão aguardada escalação do time de João Saldanha. Cada nome, um alarido de aplausos e urros primais: Félix, Carlos Alberto, Djalma Dias, Joel e Rildo; Piazza e Gérson; Jairzinho, Tostão, Edu…após uma pausa estratégica completava o locutor…  e Pelé.  Para o delírio incontrolável da plateia. Sequer foi possível ouvir o nome da seleção paraguaia.

Ali estavam representadas equipes como Fluminense, Santos, Botafogo e Cruzeiro, uma estratégia bem-sucedida de Saldanha em convocar jogadores que apresentavam grande entrosamento em seus clubes de origem.

Começava a partida. Ainda que a seleção canarinho pressionasse, a defesa paraguaia resistia e o primeiro tempo terminou sem gols.

Na volta do intervalo, mesmo diante daquela multidão, era possível perceber o silêncio da seriedade da seleção nacional. Depois, as fotos revelariam os semblantes preocupados e a sisudez do rei do futebol.

A torcida se impacientava, enquanto o cronômetro corria. Algumas vaias para o ponta esquerda Edu, pois muitos consideravam Rivelino uma escolha melhor.

Como diria Nelson Rodrigues, entrou em campo o Sobrenatural de Almeida e, aos 23 minutos do segundo tempo, direcionou o chute forte e certeiro de Edu. Aguillera, o goleiro paraguaio que fazia ótima partida, rebateu e a bola procurou seu parceiro predileto, os pés de Pelé, que emendou forte para as redes.

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Primeira página Jornal dos Sports, 01 setembro de 1969

Naquele dia, por influência do momento ou fato, sentimos a arquibancada estremecer sob os pés de quase 200 mil torcedores. Talvez tenha efetivamente ocorrido, pois muitos olhares se cruzaram, com um misto de satisfação e surpresa, entre bandeiras e fogos de artifício, que não eram proibidos, naquele terremoto humano.

Com gol de Pelé, delírio da arquibancada, no cair da noite de agosto, sob a lua cheia, o Rei do Futebol carimbava o passaporte para a consagração no México, no ano seguinte. Ainda extasiados, tomávamos o caminho de volta, seis quilômetros de caminhada, pois era impossível embarcar em qualquer tipo de transporte coletivo ou individual.

O noticiário só tratava da classificação do Brasil para o mundial. Naquela noite não se comentou sobre censura, perseguição política, luta armada. Os canais de televisão repetiam incansavelmente aquele gol que tivemos o prazer de assistir ao vivo, à direita das cabines de rádio, possivelmente consagrando João Saldanha pelos pés de Pelé.

Outra ilusão no futebol.  Em março de 1970, cerca de três meses antes da Copa do Mundo, pressões políticas e pessoais demitiram o responsável pela classificação e pelas “feras” do Saldanha.

Entrava Zagalo, mas é uma outra história que não ofusca aquela tarde-noite memorável de agosto, com Pelé estufando as redes do antigo Maracanã.

Uma partida memorável num cenário inesquecível.

Obrigado, Pelé!

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Gol de Pelé e comemoração de Tostão. Foto: Correio da Manhã, 02 de setembro de 1969

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Carioca, arquiteto graduado pela FAU-UFRJ, professor, incluindo a FAU-UFRJ, no Departamento de História e Teoria. Autor de pesquisas e projetos de restauração e revitalização do patrimônio cultural. . Consultor, palestrante, coautor de vários livros, além de diversos artigos e entrevistas em periódicos e participação regular em congressos e seminários sobre Patrimônio Cultural e Arquitetura no Brasil.
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