William Siri: ‘Tempestade perfeita’ transforma crianças em alvos nas escolas

Políticas públicas devem conduzir a retirada do ódio da sala de aula e desenvolver o pensamento crítico

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Escola Manoel Cícero, na Gávea — Foto: Reprodução

Depois de semanas intensas de terror e medo nas escolas, os questionamentos sobre a segurança de crianças e jovens – e do que pode ser feito para reverter o quadro de violência crescente – ainda existem. A escalada do extremismo e do discurso de ódio desenfreado é uma triste realidade que não pode mais ser varrida para baixo do tapete. Ela afeta a vida de todos nós e desestabiliza a sociedade ao colocar milhões de pessoas sob o risco iminente.

Sabemos que o ambiente escolar é reflexo direto das mazelas do país. Este triste capítulo se mostra bem didático quanto a isso. Sem dúvida, uma das medidas a serem tomadas contra o preconceito e desinformação que mata é a promoção dos espaços de socialização. Estimular o debate e o convívio social se mostra uma das formas mais eficientes de combate ao isolamento e à falta de tolerância. Este é um caminho obrigatório contra a discriminação e disseminação de absurdos, papel que a escola não dá conta sozinha.

Falsas narrativas compartilhadas com grande frequência geram temores que têm grande contribuição no fenômeno do surgimento das ameaças a professores e alunos. Graças à rede de ódio, as escolas passaram a ser acusadas nos últimos anos de ser o lugar de propagação da fictícia “ideologia de gênero” e de uma suposta “doutrinação de esquerda”. Deste modo, rotularam todo o ambiente escolar, incluindo os profissionais e seus ensinamentos, como um inimigo a ser combatido. Quem puxa o gatilho executa o script desenhado pela propulsão das mentiras. Com isso, percebemos que o passo que antecede os atentados contra a vida é a morte do espaço aberto de debate nas escolas. A simples abordagem de temas fundamentais por professores e funcionários passou a gerar temor e conflitos em sala de aula e fora dela.

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Para piorar, o sistema educacional foi enfraquecido pela implementação do Novo Ensino Médio, uma reforma neoliberal que dispensa a formação cidadã em nome de uma pretensa preparação para o mercado de trabalho. Como é possível estimular o pensamento crítico uma vez que foi retirada da grade curricular a obrigatoriedade de disciplinas fundamentais para a reflexão como Sociologia, Filosofia, História e Geografia? Equivale a classificar como descartável referências essenciais para a evolução da sociedade. Isso, somado à política de austeridade dos gastos, aprofunda a desigualdade de formação e estimula a construção da identidade do indivíduo dissociada do coletivo, isso quando não imune a ele. A verdade é que tudo parece convergir para a “tempestade perfeita” proveniente da falta do debate, do convívio harmônico e do exercício da tolerância nas escolas.

Outro fator fundamental é o impacto das redes sociais. Nelas, nossos jovens têm sido cooptados por grupos extremistas, que usam as plataformas para incitar o ódio e incentivar respostas violentas às frustrações. Já ficou comprovado que a maioria desses ataques é planejada virtualmente a partir dessas conexões, mas muito pouco se faz a respeito. É essencial cobrar e atribuir responsabilidades às empresas, cabendo a elas o monitoramento e combate aos discursos criminosos e às fake news, além da denúncia formal às autoridades. Não há termos de uso das redes sociais que se sobreponham à nossa Constituição.

Por tudo isso, nossas escolas se transformaram em praças de batalha e tristes vitrines de preconceito e violência. Na rede municipal de educação, o desafio se mostra ainda maior por conta do improvisado controle de entrada e saída nas unidades pela carência de pessoal. Se faz urgente a criação de concursos para função de porteiro, atualmente extinta. Da mesma forma, precisamos da convocação dos Agentes Educadores e Agentes de Educação Infantil já aprovados. Cabe à Secretaria da Educação chamar e treinar esses profissionais, criando protocolos de segurança a serem seguidos e guiados por eles nas emergências.

Vale aqui ressaltar que os servidores públicos da rede de ensino, além de conhecerem a rotina, constroem vínculos com o território e com a comunidade escolar que os torna aptos a identificar atitudes suspeitas, podendo se antecipar aos riscos e colaborar na prevenção. Todas as tentativas de enxugamento do funcionalismo público e os ataques aos servidores são prejudiciais para toda a sociedade.

Também precisamos fortalecer os programas de acolhimento nas unidades escolares com a presença de profissionais especializados no atendimento psicológico e na assistência social. Algo que só será possível com o aumento das possibilidades de acompanhamento dos alunos, com a existência dos espaços de socialização, convívio e debate. A saúde mental, fator determinante nesta equação, precisa ser priorizada nas políticas públicas. O suporte atual é insuficiente para os trabalhadores da educação e os alunos e precisa ser ampliado.

Aproveito ainda para falar de outro dado preocupante: cerca de 35% das escolas estão fora da rota da Ronda Escolar. A falta de efetivo da Guarda Municipal é um dos principais entraves para a plena cobertura da rede, o que traz muita insegurança aos nossos estudantes. É necessário investir e contratar pessoal.

Dito isso, nossa convicção segue inabalável na compreensão de que uma cidade mais justa e livre do medo só será viável através da garantia do processo de ensino-aprendizagem pleno. A valorização dos trabalhadores do serviço público municipal da educação, da saúde, da segurança e demais áreas é fundamental. Por mais que o desafio seja complexo e o caminho, longo, há solução.

Impossível mesmo é aceitar que nossas escolas se transformem em espaços de terror e mentira. A militarização e o armamento não devem nunca ser vistos como compatíveis com o cotidiano escolar. Basta lembrar que a repressão fomenta ainda mais a violência, dando combustível para que mais frustrações individuais se manifestem com reações extremistas. A escola deve ser conservada como local de paz, aprendizado, troca e afeto, não cabendo nela lugar para o ódio e o medo. Essa é a nossa bandeira.

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1 COMENTÁRIO

  1. Parece ser verdade e notório, além das informações estatísticas, que antigamente não se tinha tanto ataques perpretados contra escolas. Mas já não seria extrapolar quando se quer relacionar a existência de uma escola não voltada ao mercado e a dificuldade de acesso as armas a uma suposta menor violência nas escolas? Pelo menos, para quem estava em uma, anos atrás, violências sempre escancararam aos olhos de quem estivesse disposto a ver. Sempre existiram ameaças discriminaçoes extorcoes preconceitos e até mesmo o cometimento de lesoes graves. Alguém sabe o que ou se faziam para combate-las? Eu não vi nada.

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