O trabalho de proteção ao Patrimônio brasileiro teve início com o antigo SPHAN, que buscou identificar o que seria Patrimônio no Brasil e responder ao interesse da construção de uma moderna identidade nacional, quando a arquitetura colonial preencheu esse papel. Obras de arquitetura excepcional tiveram maior destaque, mas o tempo levou a uma ampliação conceitual sobre o que deveria ser incluído na noção de Patrimônio. Evoluiu-se para a noção de Patrimônio Cultural e houve a incorporação de bens que não se enquadrariam nos tradicionais livros das Belas Artes.
No Estado do Rio de Janeiro, o Inepac realizou tombamentos paradigmáticos, como os bondes de Santa Teresa, a Casa da Flor e a Pedra do Sal. Dentro desse quadro de abertura para bens valorados pela sociedade se enquadra o tombamento em 2016 da Casa de Candomblé Ilê Axé Opô Afonjá em São João de Meriti. O poder público reconhecer o valor de patrimônio do terreiro foi um fato marcante, que colocou o Inepac num caminho anteriormente trilhado pelo Iphan, com o tombamento realizado em 1986 da Casa Branca do Engenho Velho, situada em Salvador.
O Ilê Axé Opô Afonjá teve muita história, tendo sido fundado em 1896 numa casa na Pedra do Sal, no Rio de Janeiro. Em 1947 ele se mudou para o local atual, num loteamento de casas simples na Baixada Fluminense. Desde o início se compreendeu que o tombamento era o reconhecimento de um valor imaterial, que se vinculava a uma edificação e a um terreno, sem que os mesmos viessem a ter um valor preponderante sobre a densidade da história do terreiro e das práticas ali realizadas. Apesar disso, o tombamento envolveu uma edificação, criando algumas situações que desafiam a gestão do bem pelo órgão de Patrimônio.
Exemplo disso foi a solicitação para a colocação de uma placa de sinalização do terreiro. Numa casa comercial de arquitetura eclética ou colonial os órgãos de tombamento têm regras sobre tais sinalizações. Mas como deveria ser a placa do terreiro de candomblé? Vale informar que a solução encontrada deixou os responsáveis pela casa satisfeitos. Outras dúvidas poderão surgir. Como deve ser pintada a casa? É possível demolir partes anexas à mesma?
Um momento interessante foi quando se constatou que a gameleira, onde habitava o orixá Iroko, plantada muito próxima ao limite do terreno, havia perigosamente estendido suas raízes pelos terrenos vizinhos, abalando as estruturas das pequenas casas. O problema cresceu, gerou protestos, e passou a exigir uma solução. A Mãe de Santo então sonhou que teria licença para realizar o corte, e fez a solicitação ao órgão de Patrimônio.
Essa não era uma questão trivial. Estaria a árvore protegida pelo tombamento? Por razões ambientais relutava-se em cortar a árvore. Por razões de segurança das edificações esse corte seria aceito. Mas não era uma árvore qualquer. Ela era a morada de uma entidade. E em se cortando, não estaria o órgão de Patrimônio compactuando com um desrespeito a uma divindade?
Diversas tratativas ocorreram em torno dessa questão. Uma equipe da Universidade Rural se propôs a realizar métodos de enxertia, de forma que o DNA do velho Iroko estivesse presente na muda que seria plantada em local mais propício. Tudo se mostrava complicado. No entanto, a Mãe de Santo tinha a resposta mais simples, que os técnicos relutavam em aceitar. No seu sonho, o espírito se incorporaria, sem maiores problemas na nova muda a ser plantada.
O caso do Ilê Axé O pô Afonjá mostra como, ao abrir-se para novos horizontes e valores mais diversos, os órgãos de Patrimônio se vêm confrontados com novos desafios. É, também, uma ação de imenso significado, especialmente quando sobem as vozes de grupos que buscam hegemonias e exclusões. Essa é uma senda aberta que só tende a ser ampliada. Com a mente aberta saberemos encontrar a boa gestão desse Patrimônio.
Prezados,
Que bom ler um texto de reconhecimento da importância desse tombamento, efetivado em caráter provisório em 1 junho de 2016. Um tombamento muito comemorado pela comunidade por ele afetada e também pela sociedade civil de forma mais generalizada, mas geralmente incompreendido por parte da área técnica. Foi, de fato, uma vitória. Mesmo com tanta reticência em relação a ele pela equipe de arquitetura do INEPAC à época, o então jovem arquiteto André Cavaco realizou o levantamento sozinho cabendo a mim, que estava como Diretor Geral, elaborar também solitariamente a defesa no que tange aos valores de natureza material do imóvel, já que no quesito móvel houve total suporte das museólogas Raquel Di Biase e Marcela Coelho e no que tange aos aspetos históricos e sociais pude contar com o apoio do professor Sérgio Linhares e da pedagoga Luciane Barbosa.
Perseguiu este tombamento, além da vontade da comunidade do terreiro (representado por Iyá Regina) e de simpatizantes (como o incansável Frei Tatá), o legado de Darcy Ribeiro e Italo Campofiorito.
Se me permite apenas uma objeção, o lugar da discussão da preservação nunca deveria ser a decisão de corte e replantio de Iroko, tomada pacificamente pela comunidade detentora do saber, e tampouco sobre uma sinalização indicativa do bem cultural, mas sim de mecanismos que permitam que essa cultura fundamental seja fortalecida e continue reforçando os atributos que emprestam valor e significado à materialidade protegida.