Lúcio Rangel foi o pai da crítica musical brasileira.
Foi mais.
Homem de vasta cultura, Lúcio Cardoso do Nascimento Silva Goulart de Ataíde Arruda Câmara do Rego Rangel, foi jornalista, escritor, crítico, musicólogo, historiador, boêmio incorrigível e um apaixonado pelo Rio de Janeiro.
Era filho de uma família burguesa, teve formação escolar e universitária. Aos 14 anos já tinha lido Machado de Assis e Flaubert, em francês. Era um dos maiores conhecedores de literatura francesa do século XVIII. Fez curso de direito na antiga Universidade do Brasil e defendeu trabalho sobre a influência da filosofia alemã nas escolas de direito penal italiano.
Apesar dessa formação, Lúcio resolveu viver plenamente a boêmia, o ambiente artístico e a crítica de música popular numa época em que ela não tinha o menor prestígio.
Era um misto de trabalhador, intelectual e boêmio. No entanto, ele jamais deixou de frequentar rodas de letrados e manter contato com dezenas de intelectuais reconhecidos, como Mário de Andrade, Rubem Braga, Paulo Mendes Campos e Vinícius de Moraes, entre tantos outros.
Bebedor de uísque, Lúcio era frequentador assíduo do Bar Villarino. O bar era parada obrigatória dos boêmios cariocas, no final da tarde. O poeta Manuel Bandeira e Lúcio Rangel iam a pé, pois moravam no mesmo prédio, na Av. Beira Mar.
Foi no Villarino, numa dessas tardes etílicas, de maio de 1956, que Vinicius de Moraes foi apresentado a Tom Jobim, pelo Lúcio Rangel. Vinicius precisava de alguém para musicar a peça “Orfeu da Conceição”. Tom Jobim aceitou o convite na hora. E, já com um copo de uísque na mão, perguntou baixinho a Lúcio: “Tem um dinheirinho aí?”
Em uma entrevista para o jornal “Cartoon”, que eu, Jaguar, Ykenga, Ferreth e Leonardo fizemos com Otélo Caçador, amigo de Lúcio Rangel, Otélo conta, entre outras coisas, que marcava encontro com Lúcio Rangel no antigo “Bar Progresso” e dizia: “Lá no Degrau. Aquele bar que tem um degrau.” Porque tinha um degrau que todo mundo caía, ou na entrada ou na saída. E “Degrau” acabou virando o nome do famoso bar do Leblon.
A bebida preferida da turma era o uísque. O uísque foi trazido pelo Lúcio Rangel que cunhou a frase: “A melhor bebida do mundo é o uísque”. Depois, é o uísque falsificado.”
A “turma” era Luiz Jatobá, Silveira Sampaio, Dorival Caymmi, Vinicius de Moraes, Ary Barroso, Sérgio Porto, Paulo Mendes Campos, Antônio Maria e Lúcio Rangel. O “pole-position” da boêmia era o Lúcio Rangel. Não só da boêmia, era um cara muito culto. “Eu aprendi muito com Lúcio Rangel. Quem nunca tomou um porre com Lúcio Rangel não pode ser considerado carioca” – disse Otélo Caçador.
Lúcio esperava o ‘Bofetada’ abrir, sentado na calçada. No ‘Zepellin’ (outro bar carioca), ao lado da cadeira do Lúcio, passava o encanamento do gás da cozinha, e estava vazando. Como ele era o primeiro a chegar nós já o encontrávamos de porre. Aí ele dizia: “Mas é o meu primeiro uísque, porra!” O porre era de gás – contou, Otélo.
Lúcio era tio do cronista e jornalista Sérgio Porto e pai da jornalista Maria Lucia Rangel. Foi padrinho – uma honra, na época – da Banda de Ipanema. Banda foi fundada em 1965, por nomes como Albino Pinheiro, Ziraldo, Fredy Carneiro e o cartunista Jaguar, entre outros.
Embora tenha tido contato com a música, desde a infância, foi pelo jornalismo e pela boêmia que Lúcio Rangel se aproximou de fato da música popular do Rio de Janeiro e de seus artistas.
Lúcio acompanhou Noel Rosa comendo ovos quentes no “Chave de Ouro”. Mário Reis, Vadico, Pixinguinha, Jacob do Bandolim, Sérgio Cabral, João da Baiana e Cartola pelos bares e morros da cidade. Frequentou a casa de Pixinguinha, Cartola e Paulo da Portela, no subúrbio de Osvaldo Cruz.
Lúcio passou por dezenas de redações de jornais e revistas e escreveu centenas e centenas de artigos, construindo influência e ganhando importância como crítico musical.
Lúcio foi também leitor e escritor incansável. Apesar do enorme interesse pela literatura e pela música, Lúcio não se preocupou em escrever livros. Sua única obra, “Sambistas e Chorões”, uma coletânea de textos já escritos e divulgados na imprensa, foi escrita em 1962.
O outro livro – uma nova coletânea de textos publicados em jornais e revistas -, apareceu postumamente em 2007, por esforço de seu genro, o jornalista e crítico Sérgio Augusto, intitulado “Samba, Jazz & Outras Notas” .
Na entrevista dada a O Pasquim, em 1970, Lúcio revelou que o início de sua coleção e fascínio material pelo disco começou ainda muito jovem: “Em 1925, com 11 anos, deixava de ir ao cinema para comprar discos. Era o início de uma paixão que me levou a conviver com intérpretes e compositores do cancioneiro e a escrever sobre eles, em mais de 2 mil artigos, e a criar, em 1954, a Revista da Música Popular” – disse.
A importância de Lúcio Rangel para a música era tanta que Sérgio Augusto sugeriu que ele teria sido, à época, uma espécie de “google bípede”.
Lúcio Rangel nasceu em 17 de maio de 1914 e faleceu em 13 de dezembro de 1979, há 41 anos, em Nova York.
As companias citadas eram mais antigas, mas, na foto, se não estou enganado, estão o Chico e o Nelson Motta, ainda novinhos. Artigo delicioso, parabéns ao autor. Confesso que não ouvira falar do cara, vou correr atrás – esse livro do Sérgio Augusto deve ser bom