A efervescência cultural sempre foi uma das grandes marcas da cidade do Rio de Janeiro ao longo das décadas. Aqui surgiram os movimentos culturais mais representativos na cultura nacional, como a Bossa Nova, no final década de 1950. Nas décadas seguintes, o cenário não foi diferente. A cidade atraía artistas e pretendentes ao ingresso no mundo artístico às centenas.
O surgimento do Circo Voador, na década de 1980, se inscreve nesse amplo movimento criativo apresentado pela cidade. Diante de nomes consagrados das artes cênicas e da música, jovens atores e cantores necessitavam de um espaço, onde pudessem mostrar a sua produção de forma livre e irreverente, como a trupe do Asdrúbal Trouxe o Trombone, pelo qual foram influenciados. O Circo foi esse lugar.
O espaço, que nasceu no Arpoador, mudou-se pouco tempo depois para um terreno baldio próximo aos Arcos da Lapa. O Circo Voador e a Lapa, a partir de então, firmaram uma parceria sem precedentes para a cultura carioca e, também, nacional. Pelo palco do Circo Voador passaram muitas bandas que viriam a construir o cenário do rock brasileiro: Blitz, Barão Vermelho, Capital Inicial, Camisa de Vênus e Legião Urbana foram algumas delas.
O Diário do Rio entrevistou o produtor cultural, Rafael Carvalho, um dos fundadores do Circo Voador para falar a sobre a importância do espaço no cenário cultural da cidade, bem como sobre a atividade cultural no Rio de Janeiro antes, durante e depois da pandemia. Rafael Carvalho é também radialista e ator, tendo trabalhado em inúmeros espetáculos no Brasil inteiro.
Diário do Rio – Você é um dos fundadores do Circo Voador. Você pode falar um pouco sobre esse momento da história da cidade do Rio de Janeiro?
Rafael Carvalho – Não tenho como falar sobre o Circo Voador sem me emocionar, pois ele foi a minha segunda casa. O grupo teatral, Asdrúbal Trouxe o Trombone, composto por Patrycia Travassos, Perfeito Fortuna, Luiz Fernando Guimarães, Regina Casé, Evandro Mesquita e Hamilton Vaz Pereira se desfez, deixando órfãos e seguidores. A partir daí surgiram grupos, como o Banduendes Por Acaso Estrelados, Vivo Muito Vivo e Bem Disposto, e o Corpo Cênico Nossa Senhora dos Navegantes, montado por Perfeito Fortuna, no qual comecei a trabalhar. A cidade do Rio de Janeiro vivia uma um forte efervescência cultural, mas grupos e pessoas careciam de espaços onde pudessem apresentar os seus trabalhos. O Circo Voador, que nasceu no Arpoador na virada de 1981 para 1982, na Zona Sul da cidade, surgiu para suprir essa extrema carência. Mas só ficamos ali pouco mais de 2 meses, sendo expulsos pelas autoridades da época. Em pouco tempo, conseguimos uma audiência com o então governador Chagas Freitas (1914- 1991),cuja esposa, Dona Zoé, se mostrou simpática à nossa causa. Depois disso, ganhamos um terreno baldio perto dos Arcos da Lapa, no Centro da cidade, onde assentamos as novas bases do Circo Voador tal qual o conhecemos hoje. O Circo nasceu como um espaço muito carioca, com o perfil do público da Zona Sul, mas isso começou a mudar à medida em que apresentávamos os nossos trabalhos em outros estados do Brasil. A partir daí desenvolvemos um perfil mais cosmopolita, dialogando com outras áreas da cidade e com outros estados também. O Circo Voador foi, portanto, um divisor de águas na cidade do Rio de Janeiro. Através do teatro e da música, os trabalhos que eram vistos como alternativos começaram a ser respeitados. Bandas, como a Blitz, Barão Vermelho, Legião Urbana, Camisa de Vênus, Os Paralamas do Sucesso e Capital Inicial deram os seus primeiros passos no Circo, que era um espaço onde as pessoas tinham acesso a um palco e liberdade para fazerem o que quisessem. A criação do Circo Voador foi um momento ímpar na cultura da cidade do Rio de Janeiro, nem daqui a 50 anos vai acontecer algo semelhante.
Diário do Rio – O Circo Voador não nasceu na Lapa, mas há anos está na Lapa. Qual a importância da Lapa para a vida noturna e cultural do Rio?
Rafael Carvalho – Na década de 1980, as pessoas falavam muito no Baixo Gávea ou no Baixo Leblon. Eram os locais da moda, onde jovens, artistas e intelectuais gostavam de se encontrar para trocar ideias. Esse tendência foi sendo transformada pelas própria dinâmica da cidade. Há alguns anos, o grande “Baixo” do Rio de Janeiro é a Lapa. Ela recebe gente de todos os lugares da cidade, do estado, do Brasil e do mundo. A Lapa é cosmopolita por natureza. Antes, abandonada e com problemas de iluminação e segurança, a Lapa se tornou o grande ponto de encontro da cidade, tendo em sua entrada o Circo Voador e a Fundição Progresso, onde atuo. A Lapa hoje é o “Baixo Rio”.
Diário do Rio – O que é cultura para o carioca? O carioca a valoriza?
Rafael Carvalho – Quando nós perguntamos se o carioca valoriza a cultura, devemos perguntar também de onde vem esse carioca ou quem é esse carioca. Ele não é apenas uma pessoa da Zona Sul do Rio de Janeiro. Ele é oriundo de outras áreas da cidade também. Mas existem associações que são feitas pelo carioca e que se tornam constitutivas da identidade do Rio de Janeiro. Para o carioca, o futebol, o samba e a praia são cultura. Acho que o carioca valoriza a cultura através do lazer. Ele associa uma à outra. O carioca adora ir à shows de artistas nacionais ou internacionais. Por outro lado, não desenvolvemos uma cultura voltada para a visita aos museus, por exemplo. São espaços pouco visitados na maior parte do tempo. São raras as exposições que apresentam um sucesso de público, como na exposição de Pablo Picasso e a modernidade espanhola, no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), em 2015.
Diário do Rio – Em algum momento foi possível viver de cultura na cidade do Rio?
Rafael Carvalho – Sim. Sem dúvida alguma. Trabalhei com Perfeito Fortuna, Cazuza, Bebel Gilberto, outros artistas e profissionais. Nós sempre conseguimos sobreviver das atividade cultuarias que produzíamos. Antes da pandemia produzíamos 3 shows por semana na Fundição Progresso. Eu, inclusive, estava com cinco projetos em desenvolvimento. Mas trabalhar na área cultural exige muito cuidado e amor pela atividade, pois não existem dia, hora, final de semana, Natal ou Réveillon para um produtor cultural. E ele fica muito feliz com isso.
Diário do Rio – Há anos, fala-se que o teatro do Rio de Janeiro vive uma crise financeira e de criatividade. O teatro do Rio está decadente?
Rafael Carvalho – Não. O teatro da cidade do Rio de Janeiro está em ascensão. O que está em decadência é o espaço físico. O bairro de Copacabana já contou com um número significativo de teatros importantes. O bairro já teve também 19 cinemas de rua. Hoje só tem o Cine Roxy, que está fechado por causa da pandemia. Ao longo do tempo, portanto, perdemos inúmeros espaços. A crise do teatro resulta da visão obtusa de certos empresários que não veem valor na cultura e, por isso, não investem nela. Esse empresário não percebesse que um espectador que vai a um espetáculo na Fundição Progresso, por exemplo, e vê a logomarca de um empresa patrocinadora, vai lembrar daquela marca depois. O teatro não está decadente. O Rio de Janeiro tem profissionais maravilhosos, mas onde as pessoas vão se apresentar? É o dilema da nossa época.
Diário do Rio – É comum ouvirmos membros da universo artístico reclamarem da falta de investimento na área cultural, especialmente por parte da iniciativa privada. Investir em cultura é mal negócio?
Rafael Carvalho – Investir em dança, teatro, show musical, ou seja, em qualquer expressão artística no exterior é algo muito comum. Aqui nós não temos mecenas. Não entendemos esse papel. Associar o seu nome, a sua marca a um espetáculo, é uma coisa maravilhosa para os dois lados. Acho que essa postura resulta da ignorância sobre o retorno que a cultura pode dar em reconhecimento de uma marca e em recursos financeiros. No Brasil, a Lei Rouanet também é mal interpretada e usada por quem não é de direito para poder acabar com ela. Ela beneficia, às vezes quem não precisa e deixa sem recursos quem deveria ser ajudado.
Diário do Rio – Você também é um profissional do rádio. Como você o mercado de rádio no Rio de Janeiro?
Rafael Carvalho – O rádio carioca está em plena decadência. Há pouco tempo víamos a luta por audiência entre as rádios Globo e Tupi. Infelizmente, o sistema Globo decidiu acabar com a rádio Globo e demitiu todos os seus radialistas, cujos lugares foram ocupados pelo casting de artistas da TV Globo. Podemos dizer que que o rádio falado, com entrevistas e reportagens está em extinção. A rádios evangélicas dominam o AM. Hoje em dia, rádio e televisão estão lincados, fechando o circuito para os profissionais de rádio. Recentemente fiquei feliz com a volta do Roberto Canazio ao microfone da Super Rádio Tupi. O caso dele, no entanto, é exceção. Não existem vagas para radialistas.
Diário do Rio – Durantes meses, profissionais ligados à produção cultural ficaram sem qualquer tipo de auxílio financeiro. Qual é a sua avaliação sobre a aprovação da Lei Aldir Blanc?
Rafael Carvalho – O Brasil deveria ter pelo menos 150 ´programa de auxílio social aos profissionais da área, não penas a Lei Aldir Blanc e a Lei Rouanet. Pessoalmente não acessei nenhum desses programas, mas sei de profissionais que obtiveram auxílio da ONG Crew Nation, especializada no pessoal que trabalha na parte técnica, como carregadores, produtores de palco, iluminadores, por exemplo. Alguns produtores do Brasil se inscreveram e ganharam uma graninha. Os estrangeiros nos ajudaram. Enquanto isso, artistas vem sendo boicotados na Lei Rouanet por causa de questões pessoais do comando do governo brasileiro.
Diário do Rio – Por quais caminhos ocorrerão a retomada das atividades culturais na cidade?
Rafael Carvalho – É a pergunta que fazemos a nós mesmos todos dias. Até agora não chegamos a nenhuma conclusão sobre como uma vai ser essa retomada. Acho que ela será medrosa e asséptica. Espero que não haja exagero. Espero que, quando isso acontecer, já estejamos todos vacinados para não termos grandes preocupações. Mas as atividades culturais na cidade do Rio de Janeiro serão retomadas devagar. Por conta da pandemia perdemos entre 10 e 15 anos dos nossos esforças para construir um ambiente cultural mais vibrante e diversificado. Teremos que recomeçar do zero, pois agora o mundo é outro. Isso é realmente um sofrimento.
Diário do Rio – Há um frase de Oscar Wild que diz: “O pessimista é uma pessoa que, podendo escolher entre 2 males, prefere ambos”. Você é um pessimista ou um otimista?
Rafael Carvalho – Otimista, claro. As coisas boas estão aí para acontecer. As coisas ruins acontecem, mas se você não for otimista não levanta da cama de manhã. Temos que acreditar na vida, no poder do sol, nas crianças, nos bichos, e em nós mesmos. O mais importante da vida não é apenas viver. O mais importante da vida é amar.