William Bittar: Algumas considerações sobre o Carnaval no Brasil e no Rio de Janeiro

Colunista do DIÁRIO DO RIO opina sobre a principal festa popular do mundo

Advertisement
Receba notícias no WhatsApp
Carnaval no Rio de Janeiro - Foto: Nelson Perez/Riotur

Diante de um singular carnaval de 2022, dividido em dois capítulos, que acontece sem oficialmente acontecer, organizamos algumas informações sobre esta festa de tanto apreço pelo povo carioca e brasileiro, sem pretensão de qualquer ineditismo.

Com a chegada da família Real ao Brasil em 1808 e a consolidação do Rio de Janeiro como capital do Reino Unido, assumindo definitiva e irreversivelmente seu caráter urbano, as formas de lazer coletivo institucionalizaram-se, inclusive patrocinadas pela realeza que promovia festividades como aclamações, coroações, festas de casamento, procissões, desfiles.

Tornou-se frequente a fusão do sagrado e do profano em festas de origem religiosa, espetáculos populares, sementes dessa tradição: a festa da Penha, no Rio de Janeiro; o círio de Nazaré, no Pará ou a festa do Divino e a Folia de Reis, em diversas cidades do país.

Destaque especial para o Triunfo Eucarístico realizado em 1733 na cidade de Vila Rica, Minas Gerais, que celebrava a transladação do Santíssimo Sacramento da Igreja do Rosário até a Matriz de Nossa Senhora do Pilar. Mais do que uma procissão religiosa, o evento adquiriu nuances profanas num desfile dividido em alas com trajes específicos, estandartes, adereços, um verdadeiro prenúncio dos futuros desfiles das escolas de samba. Luxo, ostentação revelando a riqueza do ciclo do ouro e do barroco, cenário daquela sociedade.

Ao longo do século XIX, as classes sociais, ainda discretamente estabelecidas, utilizavam formas diferenciadas de lazer: estabelecimentos fechados, cujo acesso era permitido através da compra de ingressos ou convites especiais para a elite e seus eleitos e a via pública para o restante da população, como escreveu Castro Alves em O Povo no Poder:

”A praça! A Praça é do povo
como o céu é do condor
É o antro onde a liberdade
Cria águias em seu calor!”

Clubes fechados, associações destinadas a corporações ou membros da elite, associavam-se aos edifícios para espetáculos como teatros e casas de ópera. Reuniões, saraus musicais ou literários, realizavam-se a portas fechadas, com horários pré-estabelecidos e convidados selecionados. Para o povo, institucionalizava-se o carnaval que, segundo a tradição, fora introduzido no Brasil provavelmente no século XVII pelos portugueses.

Sua manifestação, restrita às camadas menos afortunadas, era parente direta dos blocos de sujo que não tem fantasia e vai batendo na lata, pois carnaval é pular, como cantava a marcha de Luiz Antonio, gravada por Elza Soares, em 1969.

Conhecido originalmente como entrudo, tratava-se de uma diversão alegre, porém violenta e suja, devido às misturas que eram atiradas reciprocamente pelos grupos, compostas de terra, cal, lama, urina e o que mais estivesse disponível, conforme descrição de Gregório de Matos, na Bahia do século XVII: -Esguichar, deitar pulhas, laranjadas.

Considerado uma festa democrática, só gradativamente agraciou a simpatia de segmentos de maior poder aquisitivo e aparente melhor condição cultural. Anteriormente era tratado como manifestação bárbara da plebe, exotismo e extravagância, cultuados como excentricidades por uma sociedade afrancesada.

As elites restringiam-se, a partir de 1840, aos bailes de salão, enquanto a população percorria as ruas ao som do Zé Pereira, a lendária figura de um português que, desejoso de animar a festa, muniu-se de bumbo e fanfarra e sozinho percorria as ruas provocando grande alarido. Preconizava-se ali a fusão psicoespacial entre protagonistas e espectadores futuramente presente nos corsos, cordões, ranchos e grandes sociedades que tomaram ruas e avenidas e promoviam batalhas de confetes.

Era uma associação entre as diferentes classes sociais, trocando seus papéis; era a fusão do processional religioso católico com os cultos pagãos; o prazer e o pecado tornados públicos, democraticamente expostos, trocando a abstinência da carne – carnem levare – pelo hedonismo regado a muito álcool, lança-perfumes, limões de cheiro e cada vez menos roupa.

A festa não apresentava protagonistas, ou melhor, todos se consideravam atores principais daquela grande peça coletiva, com papéis trocados, sem preconceitos, expondo-se sem máscaras, por trás das fantasias mascaradas. Vestindo camisas listradas ou amarelas, saindo por aí, tomando Parati e depois um copo bem gelado com bicarbonato, diziam os versos da música popular.

Os blocos evoluíram, aumentando o número de componentes, criando os próprios trajes como ocorria com agremiações tradicionais como Cacique de Ramos ou o Bafo da Onça. Conta a tradição que o Bafo foi criado por Tião Carpinteiro, em 1956, que desfilava solitário fantasiado de onça. Em pouco tempo a agremiação reuniu milhares de foliões com trajes coloridos como o felino, desfilando pelo Centro do Rio, cantando que é o Bafo da Onça que tenho guardado no meu coração.

O Cacique, rival visceral do Bafo da Onça, provocando verdadeiras “batalhas” na região central, foi criado em 1961 , na região da Leopoldina, onde ainda mantém sua tradicional quadra de ensaio. Seus componentes trajavam-se como “índios americanos”, nas cores preto, branco e vermelho. Também reuniu milhares de componentes cantando que sou o Cacique de Ramos, meu bem, ninguém vai me derrubar e sua quadra tornou-se referência do samba nacional, abrigando grupos como o Fundo de Quintal, além de diversas outras personalidades do mundo sambista.

Ao final dos anos 1960, após sucessivas transformações culturais, alguns personagens de projeção social ou status, decorrente da sua inserção no denominado high society integraram-se assumidamente às folias momescas. Desfilavam em agremiações carnavalescas como as Escolas de Samba, presentes no universo carioca desde 1929, com a fundação da Deixa Falar, do tradicional bairro do Estácio. Depois vieram as pseudo celebridades, atores e atrizes, jogadores de futebol, modelos, rainhas e madrinhas de bateria.

Aqueles grêmios recreativos eram originalmente compostos por uma população de baixo poder aquisitivo, moradora de bairros pobres ou favelas da cidade, predominantemente preta.

Era uma festa popular, suburbana por natureza, destacando-se o Rio de Janeiro como o inegável responsável pela divulgação e formalização de uma imagem nacional e internacional do evento, gradativamente alterada geográfica e ritmicamente, deslocando seu centro geométrico para a região Nordeste, onde mantém poucas tradições originais, voltadas para atração de turistas e investimentos.

A cidade responsável por sua popularização acabou por afastar o povo, seu criador, da essência da festa, transformando-a num evento turístico, oneroso para o morador local, em formato exportação made in Brazil, inventando as Super Escolas de Samba S.A, Super alegorias.

A partir do final do século XX, o carnaval tornou-se um produto nas diversas regiões do país. Uma festa direcionada, não mais a explosão popular. A herdeira ancestral de origens diversificadas, atribuídas ora às dionisíacas gregas, bacanais romanas, festas marginais da idade Média, desaguando em bailes organizados do Renascimento, porém sempre associadas ao caráter transgressor assistiu o Rio de Janeiro apresentar quase militares desfiles de escolas de samba, muito diferentes daqueles da antiga Praça Onze, próxima à Tia Ciata.

No final da década de 1980, sem considerar a opinião dos sambistas, foi projetado um novo cenário para esta finalidade: a Passarela do Samba, cuja escala arquitetônica acabou por camuflar o verdadeiro sambista em caras alas coreografadas, carros monumentais ou adereços e fantasias que literalmente ocultam o passista, essência natural do desfile, motivo de sua existência.

Salvador herdou o antigo carnaval de rua do Rio, acompanhado pelos trios elétricos e o compromisso de “inovar” as danças, ao som repetitivo da axé music, herdeira ingrato de Dodô e Osmar, que levantavam as ruas da Bahia. Apesar do aparente apelo popular, o povo fica de fora dos trios elétricos ou dos grandes blocos afro-brasileiros, que cobra excessivamente caro pelos abadás e o direito de brincar dentro do cordão, restando apenas seguir atrás, muito atrás do trio elétrico, pipocando.

Restaram vestígios, porém encobertos por véus, distante dos olhares da maioria que preferem o carnaval pasteurizado via satélite e não olham para os lados, para o folião solitário, perdido num café zurrapa na Lapa, para os clóvis ou bate-bolas, os morcegos, caveiras e diabos que passam assustadores pelas crianças suburbanas. Ainda ecoa o samba de roda, os sambas de quadra, sementes dos velhos carnavais, que nas esquinas e botecos ensaiavam e preparavam os futuros sambas-enredo, agora também pasteurizados e encomendados sob a capa dos cartolas do samba, patrocinadores interessados em cumprir regulamentos cerceadores e antinaturais que impedem a transformação da ancestral procissão dos sempre oprimidos num desfile de deuses e rainhas que insistem em povoar o imaginário coletivo com o poder da transmutação.

Mas ainda assim, persiste o milagre, e quando chega fevereiro, uma força mítica se apodera dos viventes no Brasil, numa transbordante e sensual alegria, que tudo pode ainda permitir, pois hoje é carnaval.

Advertisement
Receba notícias no WhatsApp
entrar grupo whatsapp William Bittar: Algumas considerações sobre o Carnaval no Brasil e no Rio de Janeiro
Avatar photo
Carioca, arquiteto graduado pela FAU-UFRJ, professor, incluindo a FAU-UFRJ, no Departamento de História e Teoria. Autor de pesquisas e projetos de restauração e revitalização do patrimônio cultural. . Consultor, palestrante, coautor de vários livros, além de diversos artigos e entrevistas em periódicos e participação regular em congressos e seminários sobre Patrimônio Cultural e Arquitetura no Brasil.

Comente

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui