Katia Magalhães: Terremoto em Brasília, a Agonia das Liberdades

A advogada Katia Magalhães, colunista do Instituto Liberal, condena o vandalismo do último domingo em Brasília e seus resultados para a democracia

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Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Se o primeiro domingo do ano será lembrado como a data do retorno ao poder de um ex-condenado não-absolvido por saques ao erário, o segundo ficará marcado pela brutalidade da invasão e do vandalismo praticado em prédios públicos na capital federal. Foram cenas evocativas, em nosso imaginário, da barbárie dos movimentos disruptivos da saga humana, que sempre foram objeto da mais ácida reprovação por parte dos pensadores liberais, e devem seguir provocando asco em todo aquele que avoque para si a condição de defensor das liberdades.

Há razões para revolta? De sobra! Para quem preza os valores da civilização, não faltam meios eficazes para demonstrar amplo repúdio à corrupção endêmica, ao autoritarismo judicial ou à passividade conivente do nosso dispendioso congresso. Com esforço, organização articulada e alguma dose de criatividade, a retomada ordeira das ruas com pautas bem definidas, a crítica impiedosa a um establishment corroído, seja na imprensa ou nas redes, o boicote espontâneo a grupos reconhecidamente ligados a projetos políticos delituosos, ou até mesmo greves e paralisações podem ser medidas mais que suficientes para externar indignação e abalar os pés de barro dos nossos poderosos. Aliás, em período bem recente, movimentos pacíficos encabeçados por parcela significativa da sociedade apoiaram forças-tarefa reveladoras dos intestinos do poder, como a Lava-Jato, e pressionaram a classe política em prol do impeachment da mandatária de plantão.

Contudo, para os truculentos, incapazes de um raciocínio mais elaborado, o importante é inflamar os ânimos, e fazer valer suas causas, “custo o que custar”. Foi assim em 2013, quando o caos instaurado pelos chamados “black blocks” manchou nossas ruas de sangue, inclusive o de um cinegrafista em pleno exercício de sua profissão. Também em 2017, atos protagonizados por centrais sindicais contra o então governo Temer redundaram em depredação de edifícios e até Ministérios, em episódios festejados, na época, por Flávio Dino e outros figurões do grupo atualmente assentado no Planalto. E, ontem, testemunhamos o ressurgimento do vandalismo, face brutal do descrédito na ordem estabelecida.  

Na grandiosa obra Os Irmãos Karamazov, do escritor russo F. Dostoievski, o niilista Ivan, após a leitura de um poema por ele concebido sob o título O Grande Inquisidor, profere a frase talvez mais emblemática do livro: “se Deus está morto, então tudo é permitido”. Traduzindo esse enunciado de cunho metafísico para o universo político, pode-se entender por “Deus” qualquer instância normativa que, em um sistema de instituições operantes, seja capaz de reprimir nossos baixos instintos, possibilitando, assim, o convívio social.

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Entre nós, temos vivenciado um período de anomia, e não de hoje. Apesar da existência de normas formalmente em vigor, nutrimos a clara percepção de que uma mesma lei “não vale para todos”, ou até mesmo de que várias delas “sequer se aplicam”. Afinal, de que serve uma Constituição que assegure a liberdade de expressão e o devido processo legal, se aqueles que seriam responsáveis por guardá-la são os primeiros a censurarem opiniões divergentes e a decretarem prisões arbitrárias? Qual a utilidade de uma legislação processual, se os ritos são atropelados a todo o instante? De que adianta um extenso Código Penal, se corruptos notórios são prestigiados, e se uma massa enfurecida se sente autorizada a barbarizar prédios públicos, em um país que figura dentre os recordistas de crimes violentos no mundo?   

Leis não são mais outorgadas pelo Deus do povo em questão, e tampouco fruto das tradições de gerações passadas. Nas sociedades contemporâneas, são promulgadas a partir dos acordos possíveis entre os atores políticos, eleitos para atuarem como representantes dos mais diversos segmentos de uma sociedade. Portanto, a falta de credibilidade por parte dos que elaboram as normas acarretam descrédito a estas, que passam a ser vistas pela população como papel velho e mofado. Na terra do homem cordial, a única lei que importa é a do “jeitinho”, onde a bajulação e o servilismo podem render favores estatais inestimáveis, dentre os quais bons negócios com o governo – rentáveis para o contratado, não para o cidadão -, e até a garantia da liberdade a quem deveria estar no cárcere por uma série de malfeitos.

E não são discursos supostamente democráticos e empáticos da boca de figuras comprovadamente ligadas à criminalidade grossa que restaurarão a confiança do indivíduo no sistema político e na legislação. Em sentido inverso, tampouco serão práticas brutais, como as de ontem, capazes de suscitar verdadeiros atos de contrição por parte de autoridades, fazendo-as enxergar os efeitos nefastos de sua atuação abusiva, e levando-as a retroceder nos arbítrios.

Muito pelo contrário! A barbárie brasiliense servirá de pano de fundo ideal para uma série de medidas ainda mais repressivas que as ondas de censura e prisões injustificadas dos últimos meses. Ora, se, no passado, a iminência do terror comunista justificou a criação dos atos institucionais – por definição, a maior das excrescências jurídicas! -, da mesma forma, a ameaça da barbárie “fascista” será usada como pretexto para calar qualquer manifestação contrária ao atual governo, aniquilando, de vez, uma já esquálida oposição.

Aliás, por que falar no futuro, se já começamos a sentir os resultados dos atos de domingo? Ontem mesmo, o atual ocupante do Planalto, consternado e posando de vítima, fez questão de vir a público anunciar a intervenção por ele decretada no Distrito Federal, e, por óbvio, ganhar algumas doses de capitalização política. Muito curioso, em se tratando de alguém partidário de uma ala ideológica que tem na violência “revolucionária” o seu principal modus operandi, e costuma babar diante de episódios históricos sanguinolentos, como a Comuna de Paris, a Revolução Russa, a Cubana e até os eventos de Maio de 68 na França.

Por outro lado, a intervenção, capitaneada por um ex-presidente da UNE e responsável pela organização de uma viagem de Fidel Castro ao Brasil, impede, durante toda a sua vigência, a discussão de reformas constitucionais prementes, como, por exemplo, a tributária e a administrativa. Em mais um efeito nefasto da brutalidade de ontem, investidores internos e externos, já desinteressados por um país muito atrasado na implementação de uma agenda reformista, se sentirão ainda mais desmotivados diante de um cenário de caos social, que veio apimentar bastante a insegurança jurídica e política com a qual já convivíamos há algum tempo.

Ainda no terreno das incertezas, acaba de ser noticiado o afastamento do governador eleito do DF por deliberação do democrata-mor Alexandre de Moraes, devido à sua suposta “omissão e conivência com criminosos”. Tudo por meio de uma simples canetada monocrática, sem contraditório ou ampla defesa. Simples assim. Se essa decisão vier a fazer jurisprudência, no amanhã muito próximo, a eclosão de vandalismo em outros Estados da federação poderá servir de fundamento suficiente para a retirada de cena de outros mandatários eleitos, sobretudo se estes não demonstrarem alinhamento absoluto à ordem democrática vigente.

No universo onde o Grande Inquisidor Sevilhano é capaz de submeter o próprio Cristo reencarnado a um torturante processo inquisitorial, julgando-o e condenando-o como o “pior dos heréticos” por ser “incômodo” àquela ordem seiscentista, como no poema de Ivan Karamazov, nada mais faz sentido, e a imprevisibilidade impera. Em momentos como o que vivemos, em que pouco ou nada entendemos da realidade ao nosso redor, é crucial prosseguir em uma atuação coerente com as nossas propostas, e mostrar à sociedade inteira que a defesa das pautas liberais e anticorrupção ainda é viável por meios pacíficos. Urge, sobretudo, lutar contra a escalada do autoritarismo, antes que os episódios degradantes do último domingo sejam lançados como verdadeira bomba para justificarem, na hipocrisia do discurso político e midiático, a aniquilação das nossas liberdades!

Kátia Magalhães é advogada e tradutora jurídica e colunista do Instituto Liberal

Este é um artigo de Opinião e não reflete, necessariamente, a opinião do DIÁRIO DO RIO.

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