Em dezembro de 2001, a grande repórter Eliane Brum fez, para a revista Época, uma reportagem chamada “A Casa de Velhos”. Brum passou uma semana na Casa São Luiz, localizada no Caju, na região Central da cidade do Rio de Janeiro, e terminou a estadia com um texto profundo e forte. A frase “a vida inteira espremida numa mala de mão”, presente nas páginas, é considerada por Eliane a melhor sequência de palavras que ela já escreveu em algum trabalho jornalístico.
Eu, que cheguei à Casa São Luiz, o residencial para idosos mais antigo do Brasil, em uma quente tarde de quinta-feira de janeiro de 2023 com uma mochila nas costas, não ouso nem considerar qualquer relação com uma reportagem feita por Eliane Brum. Não tenho bagagem nem audácia para me comparar, nem de longe, com uma das maiores jornalistas brasileiras dos últimos tempos. Contudo, decidi pegar emprestada a frase de Eliane. Esse texto está no livro “O Olho da Rua”, no qual a repórter publicou o resultado de suas apurações e bastidores, reflexões sobre as mesmas. Em uma dessas reflexões, ela aponta erros que cometeu nos relatos na São Luiz, como expor determinadas questões pessoais dos entrevistados. Os idosos.
Começo esta matéria também comentando um erro que cometi. Passei uma tarde na Casa São Luiz, conversei com idosos residentes e pessoas que trabalham lá. Sugeriram que eu falasse com um senhor, que não gosta de aparecer em fotos, vídeos, e pediu para não ter o nome citado na matéria, mas que adora mostrar uma mala onde ele carrega memórias da vida toda. “A vida inteira espremida em uma mala de mão”. Eu estava disposto a falar com ele, ouvir as histórias, ver a mala e o que tem dentro dela. No entanto, embora alheio ao mundo moderno da exposição virtual das câmeras e celulares, esse senhor estava na aula de informática e eu não quis incomodar. Falei com outras pessoas e acabei indo embora sem conversar com o homem que carrega a vida inteira em uma mala. Um erro.
A vida é assim mesmo. Feita de acertos, erros e passagem de tempo. Ver o tempo passar pode ser algo doloroso. Mas também tem seu lado bom. Thainá Alves, psicóloga na Casa São Luiz, fala sobre o processo pelo qual os idosos passam quando precisam deixar suas antigas vidas e mudar para um novo lugar completamente diferente. Se o novo já assusta os jovens, imagina para pessoas que já passaram por tantas e tantas mudanças.
“As pessoas acham que o luto é só a morte, mas não. Luto é perder algo que você ama, algo com o qual você estava acostumado. Eles sentem falta das antigas casas, alguns ficam com limitações físicas. O que fazemos aqui é ressignificar tudo isso e mostrar o que eles ainda podem fazer vivendo aqui na Casa”, detalha a psicóloga.
Atualmente são 55 idosos na Casa São Luiz. A maioria dos residentes paga, mensalmente, para estar lá e 20% desses moram na Casa por conta de uma cota filantrópica. A filantropia está presente na São Luiz desde a sua fundação. Criada em 1890 pelo Visconde Luiz Augusto Ferreira D’Almeida, o local foi aberto para oferecer um futuro digno aos trabalhadores de sua fábrica de tecido, a São Lázaro.
Um século e mais 33 anos passaram e a Casa São Luiz seguiu com seu objetivo. Muitos são os doadores que ajudam ou ajudaram o residencial para idosos ao longo do tempo. Algumas dessas pessoas estão representadas em bustos distribuídos pelo local. Quem tiver interesse em doar, basta procurar a Casa pela Internet ou pessoalmente.
Os idosos residentes são divididos em graus. Os de grau um, dois e três. A ideia é entender as necessidades de cada um e promover os devidos cuidados. Os de grau um, mediante autorização de parentes e médicos, podem sair e voltar para o residencial quando quiserem. Dar um passeio e retornar para dormir. Como em um hotel.
“Nosso trabalho é possibilitar uma vida com dignidade, acolhimento, atividades, uma rotina agradável a todos os que residem aqui. Mudar essa mentalidade antiga de asilo, onde as pessoas são deixadas, esquecidas “, afirma Renata Ximenes, coordenadora operacional da Casa São Luiz.
A residente mais velha da Casa São Luiz tem 94 anos de idade. O mais novo está com 62. A pessoa idosa que vive há mais tempo por lá foi admitida em 22/05/2001. Ele está com 83 anos.
A solidão é um preço que quem vive muito acaba tendo que pagar. O casal Altenira Menino de Moraes e Ulisses Vilela de LIma dão o troco à essa certeza num abraço. Casados há 46 anos, a ex-secretária e o eterno capitão de Marinha vivem juntos na Casa São Luiz. Eles não tiveram filhos. Dona Altenira cuidou de um irmão mais novo, de quem ela fala com muito orgulho, e ainda ajuda a cuidar de uma irmã, debilitada, que também vive na São Luiz.
“Deus não me deu filhos, mas ajudei a criar pessoas maravilhosas”, conta Altenira, de 78 anos, na hora do almoço, pouco depois de auxiliar outra pessoa idosa, cadeirante e com movimentos limitados nos braços, a pegar uma colher que havia escapado da mão.
O senhor Ulisses, com 86 anos de idade, gosta de contar histórias da época em que estava na Marinha. Passou 25 anos nas Forças Armadas e ainda anda com o crachá de militar. Quando se recorda do namoro com Altenira, narra detalhes e faz referências e mais referências raiando uma memória – ou uma imaginação – respeitáveis. A companheira é mais objetiva “resume aí, homem. Assim não termina nunca”. Ele responde: “Já vou terminar”. Justamente na hora que o marinheiro estava contando que “roubou” a moça de um sujeito dos Estados Unidos que estava de paquera com ela.
Os dois são do Rio Grande do Norte, de Natal. Ulisses foi aluno de uma tia de Altenira. Se conheceram no fim da adolescência, começo da vida jovem. Foram para Recife, Pernambuco, depois Rio de Janeiro. “Viver é complicado, rapaz. A gente tem que saber viver respeitando todos”, frisou Ulisses. Ele disse que se eu precisasse de algo era só subir até o quarto dele, em frente ao elevador da Casa São Luiz. Eu fui. Orgulhoso, me mostrou os quadros na parede com diplomas da época da Marinha e álbuns de fotos de aniversários. Em um dos retratos, ele é beijado por duas passistas de escolas de samba, uma em cada lado do rosto. “Ainda bem que minha mulher está sempre comigo”, explica-se.
Quem já quis quarto perto do elevador na Casa São Luiz foi outra residente, que por um acordo com a família e a Casa, não vamos citar o nome na reportagem. A senhora de 86 anos não queria morar perto do elevador para receber visitas e sim para fugir. Aliás, receber visitas foi um dos motivos pelos quais a filha dela a levou para morar na São Luiz. Ela, que morava em um bairro boêmio do Rio de Janeiro, um belo dia resolveu chamar pessoas que bebiam nos bares da região famosa pela noite agitada para fazerem uma festa em seu apartamento. Preocupada com a acelerada atitude da mãe, o caminho da filha foi levá-la para o residencial para idosos. O fato aconteceu há três anos.
De raciocínio rápido e frases certeiras, a senhora me contou que a festa era somente para os amigos dela, que haviam tomado a terceira dose da vacina contra a Covid-19. Uma celebração à vida. Sobre escapar da Casa São Luiz, passado esse tempo, ela mudou o pensamento: “No começo, eu fiz muitos planos para fugir. Hoje em dia está tudo bem. Eu gosto daqui”.
Aparentando ser alguém bem à frente de sua época, a senhora, mostrando fotos e livros, lembra a história da única filha que teve: “O médico disse que eu já estava indo para os 40 anos e teria dificuldade para engravidar. Aí, eu decidi ter uma relação curta com um homem para ter minha filha, lembra ela, que foi enfermeira, assistente social e parteira. Nascida no Ceará, chegou ao Rio de Janeiro durante a inauguração do Aterro do Flamengo e logo se apaixonou pelo ritmo pulsante da cidade do Rio.
Na quinta-feira em que estive na Casa, essa senhora não quis descer para comer. Almoçou no quarto mesmo. Altenira e Ulisses comeram na área de convivência, reaberta após o controle maior da pandemia: um espaço com mesas, cadeiras e um piano para a interação dos idosos que têm condições de saúde para saírem dos quartos sozinhos ou com pouca ajuda.
São muitas as atividades na Casa São Luiz. O horário das refeições são: às 8h, o desjejum; 10h, colação; 12h, almoço; 15h, lanche; 17h, jantar e ceia entre 19 e 20h. Além disso, têm as atividades individuais e coletivas, como aula de informática e cinema.
O senhor da mala estava na aula de informática na quinta-feira em que estive na Casa São Luiz. Ele mesmo, o homem que carrega memórias de uma vida inteira em uma mala de viagem. Cabe bastante coisa em uma mala. Mas em uma vida cabe muito mais. Em um local com mais de 130 anos de existência e muitas longas vidas existindo e coexistindo cabe mais vida ainda.
Bem escrita, mas muito curta. Deveria ser uma série de reportagens.
Parabéns, Felipe!!
Reportagem ótima , bem feita, comovente, me fez repensar como será o futuro!
Seus temas de abordagem são sempre interessantes e humanizados, Felipe. Gosto do seu jeito de pensar. Grande abraço.