A polêmica da revisão das Apacs no Rio de Janeiro

Criadas nos anos 1980 para preservar imóveis de interesse histórico e a ambiência dos bairros, as Áreas de Preservação ao Ambiente Cultural (Apacs) do Rio deverão ser revistas nos próximos anos

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Largo do Boticário - Foto: Alexandre Macieira | Riotur
Largo do Boticário - Foto: Alexandre Macieira | Riotur

No dia 18 de janeiro de 2024, o jornal O Globo publicou uma matéria sobre a controvérsia deflagrada pela previsão de revisão das Áreas de Proteção do Ambiente Cultural – APACs contida na Lei Complementar nº 270, de 16 de janeiro de 2024, o novo plano diretor do Rio de Janeiro.

De acordo com o novo plano diretor, APAC é “o território de domínio público ou privado, que apresenta conjunto edificado de relevante interesse cultural, cuja ocupação e renovação devem ser compatíveis com a proteção e a conservação de sua ambiência e das características socioespaciais identificadas como relevantes para a memória da cidade e para a manutenção da diversidade da ocupação urbana constituída ao longo do tempo”. E as APACs sobrepõem-se a outras legislações, podendo estabelecer restrições edilícias e de utilização para os bens e espaços públicos nela contidos.

Dentro delas os imóveis podem ser classificados como bens preservados ou bens passíveis de renovação. Ambas as classes compõem a ambiência cultural de um conjunto urbano a ser protegido, porém os bens preservados não podem ser demolidos, ao passo que os bens passíveis de renovação podem sê-lo, mas se sujeitam a certas restrições — por exemplo, a necessidade, em novas construções, de aprovação pelo órgão de tutela do patrimônio cultural das especificações dos materiais de acabamento nos projetos de fachada antes da construção da primeira laje.

Na prática, as APACs são muito parecidas com as áreas de entorno de bem tombado. Basicamente, a diferença é que nestas existe uma subordinação da ambiência em relação a um bem ou conjunto de bens tombados, visando as restrições garantir a fruição visual e a valorização desse bem ou conjunto de bens, e naquelas não.

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Mapa da APAC de Laranjeiras, criada pelo Decreto Municipal nº 20.611, de 10 de outubro de 2001, e complementada pelo Decreto Municipal nº 28.255, de 26 de julho de 2007.
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Travessa Euricles de Matos, na APAC de Laranjeiras, a 450 metros (6 minutos a pé) de distância da estação de metrô Largo do Machado.

Pois bem. Apesar de o plano diretor manter as APACs instituídas antes de sua publicação, a polêmica surgiu pelo mero fato de ele determinar que as APACs existentes passem por avaliação durante sua (do plano) vigência. Ora, o planejamento é um procedimento (dinâmico) e não se confunde com o plano, que é um documento (estático) que retrata as decisões tomadas no planejamento. Tanto é assim que, para sua plena implementação, o plano diretor instituiu o Sistema Integrado de Planejamento e Gestão Urbana Ambiental e da Paisagem Cultural – Siplan, ao qual cabe a formulação contínua da política urbana, por meio da regulamentação, detalhamento, revisão e atualização das diretrizes, programas e instrumentos — entre estes últimos as APACs — do plano diretor e a avaliação de seus resultados.

Criticar de antemão a revisão das APACs simplesmente não faz sentido. Reavaliar uma decisão de planejamento, sobretudo no âmbito do Siplan, cujas atividades o próprio plano diretor garante amplo e permanente acompanhamento e controle sociais, é algo salutar e um exercício de democracia. O resultado dessa reavaliação, se determinada APAC deve ser ampliada, reduzida ou extinta, é outra questão, que passa por investigar a quem a APAC serve e quais seus impactos econômicos, sociais e ambientais.

Do ponto de vista econômico, quando o planejamento urbanístico restringe o adensamento urbano em certo bairro, isso tende a gerar um efeito colateral no mercado imobiliário: menos unidades habitacionais disponíveis, preços de imóveis mais elevados. Lei de oferta e demanda.

Do ponto de vista social, uma menor oferta de moradia em bairros mais bem servidos de equipamentos comunitários e postos de trabalho empurra a população mais pobre para bairros periféricos, subtraindo-lhes qualidade de vida, pois impõe custos e longos deslocamentos para se divertir e trabalhar.

E do ponto de vista ambiental, se a população aumentar e a verticalização é contida, o Rio de Janeiro crescerá para os lados e/ou de maneira clandestina, afinal a necessidade de moradia não desaparecerá por meio de uma canetada. Crescendo para os lados, a cidade pressiona suas áreas verdes — sobretudo da Zona Oeste — e favorece o desmatamento e a poluição atmosférica pelo aumento do uso de transportes motorizados. E a clandestinidade se expande por meio da formação de cortiços, que é a subdivisão física e ilegal de unidades autônomas para atender a mais pessoas num mesmo espaço.

Logo, se a infraestrutura urbana em uma APAC comporta adensamento, sua defesa parece injustificável.

Por outro lado, se a infraestrutura urbana em uma APAC não comporta adensamento, não se estaria aí diante de uma boa oportunidade para a realização, por exemplo, de operações urbanas consorciadas, justamente como forma de captação dos recursos para o financiamento das obras (de mobilidade urbana, saneamento básico etc.) necessárias para a resolução do problema? Além de tais operações promoverem transformações urbanísticas estruturais, elas geram empregos, incrementam a base tributária e expandem o estoque de imóveis disponíveis no mercado.

O novo Plano Diretor acerta em propor a revisão das APACs. Não se podem confundir interesses patrimonialistas com preocupações de preservação ambiental e cultural da cidade. Os interesses dos proprietários de imóveis nessas áreas são legítimos, mas a política urbana carioca não pode ser pautada exclusivamente por eles.

Vinícius Monte Custodio é Advogado, Doutor em Direito Econômico e Economia Política pela Universidade de São Paulo e Mestre em Direito Urbanístico e Direito Ambiental pela Universidade de Coimbra.

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