as pessoas com deficiência foram alvo de comportamentos e reações distintas e contraditórias de exclusão” – o trecho, retirado diretamente da Campanha da Fraternidade, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, retrata a dura realidade de quem tem que conviver não apenas com a deficiência, mas também com o preconceito que a cerca.
Este fator, somado à falta de um atendimento médico especializado fez surgir, na década de 50, a Associação Brasileira Beneficente de Reabilitação (ABBR), que completa 70 anos em agosto. Inaugurada por Juscelino Kubistchek, pioneira no combate a poliomielite, cenário de livro e detentora do Prêmio Nacional de Direitos Humanos, a organização filantrópica coleciona conquistas dentro e fora da saúde.
Como forma de celebrar esta data, o espaço está passando por importantes reformas estruturais – desde a ampliação do ginásio de fisioterapia, com adição de novos e mais tecnológicos equipamentos, criação do setor de terapia aquática (um avanço da hidroterapia), uma unidade integrada para o tratamento de pacientes com autismo (TEA), e até mesmo a nova fachada – que inclui um mural homenageando a cidade do Rio de Janeiro.
De “Depósito de crianças” ao primeiro centro de reabilitação infantil do país
A instituição nasceu através da aproximação de duas famílias, a do arquiteto Fernando Lemos e do empresário Charles Murray – ambos com filhos vítimas de paralisia infantil. O encontro da dupla foi promovido pelos médicos das crianças, os ortopedistas Oswaldo Pinheiro Campos e Jorge Faria, e culminou na sua fundação em 05 de agosto de 1954, no auditório da Associação Brasileira de Imprensa (ABI).
Entretanto, o primeiro passo no que viria a se tornar a organização como conhecemos hoje ocorreu somente em 1956, quando o Governador do antigo Estado da Guanabara, o Dr. Sette Câmara, cedeu à ABBR um terreno no Jardim Botânico, onde funcionava o antigo “Depósito de crianças inválidas” (nome dado pela prefeitura). A decisão estampou as capas dos principais jornais da época, que anunciavam a criação do primeiro centro de reabilitação das vítimas de paralisia infantil do Brasil.
O espaço foi inaugurado em setembro de 1957, pelo então presidente da República Juscelino Kubistchek, acompanhado de sua esposa, Dona Sara Kubistchek. A cerimônia contou com o discurso histórico do arquiteto Fernando Lemos, que pregou igualdade e acessibilidade no tratamento às vítimas das deficiências.
“A vocês que tendes está felicidade (da não deficiência), eu faço um apelo, em nome de todos os pais que foram atingidos por esta desventura. Que vos torneis não simples soldados, mas brigadeiros, na luta que vamos iniciar nos apoiando, angariando donativos e associados, para que possamos, dentro de breve, atender esta gigantesca obra da reabilitação das vítimas da paralisia” – trecho documentado do discurso.
Desde então, a instituição assumiu o pioneirismo em diversas frentes da saúde da cidade do Rio de Janeiro, como o combate a poliomielite e a formação da primeira turma de fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais do país. Posteriormente, em 1999, a ABBR recebeu o Prêmio Nacional de Direitos Humanos, concedido em solenidade no Palácio do planalto, pelo presidente Fernando Henrique Cardoso e o Ministro da Justiça, José Gregori.
O maior centro especializado em reabilitação do Brasil
Atualmente, a ABBR conta com mais de 20 setores integrados dentro de seu espaço, desde fisioterapia e terapia integrada (STI), até unidades de musicoterapia, enfermagem e serviço social. Além disso, a organização também possui sua própria oficina ortopédica, que opera de forma integrada ao centro na confecção de aparelhos de aplicação terapêutica, como próteses, órteses e cadeiras higiênicas que auxiliam na locomoção.
O espaço, que é o maior centro especializado do país, atende cerca de 1000 pacientes por dia, sendo sua maioria (79,5%) através do Sistema Único de Saúde (SUS). Para se ter ideia do seu impacto dentro da saúde na cidade, só no ano passado, a instituição realizou mais de 24 mil avaliações terapêuticas, 15 mil consultas, fabricou mais de 5 mil produtos.
De acordo com o ortopedista João Grangeiro, diretor médico executivo da associação, o principal objetivo do trabalho realizado é democratizar o acesso a tratamentos especializados, que ainda possuem um custo muito elevado para uma parcela da população.
– A reabilitação é um tratamento de alta complexidade física e intelectual, que muitas vezes é negado por falta de informação ou oportunidade. Nosso objetivo como uma sociedade civil de beneficência é propor um atendimento mais humanizado, seja através da parceria com a rede pública (SUS) ou de forma privada e individual – explica o médico.
Apesar da parceria com a prefeitura, a rede funciona prioritariamente através de contribuições de seu pequeno quadro de sócios (cerca de 500), e doações de terceiros, inclusive algumas personalidades, como o ex-craque canarinho Zico. Inclusive, a ABBR é uma das instituições contempladas pelo “Jogo dos Estrelas”, evento esportivo amistoso criado pelo galinho da gávea.
Quem também assume um papel social fundamental desde a criação da entidade são as “Legionárias”, um grupo de senhoras influentes da sociedade carioca que até hoje trabalham para angariar recursos para marca. A denominação, inclusive, consta no próprio estatuto da ABBR, em homenagem a Maria Luiza Rondon da Rocha Miranda, cofundadora e primeira presidenta, entre os anos de 1970 e 1981.
A atuação delas contribuiu para iniciativas significativas que ocorreram ao longo dos anos, como a parceria com movimentos internacionais, entre eles o Fundo Mundial de Reabilitação, e o Instituto de Medicina de Reabilitação da Universidade de Nova York, e a Campanha de Doação de Cadeiras de Rodas (em 2008), destinada ao setor infanto juvenil.
A medicina como fator de inclusão social na arte
Além de Zico, outras figuras históricas marcaram presença na associação ao longo dos anos, como o pesquisador médico e cientista Albert Sabin, que desenvolveu a vacina oral (gotinha) contra poliomielite, a atriz Fernanda Montenegro, e o arcebispo Dom Hélder Câmara, que durante sua visita afirmou – “Pensei em encontrar um lugar de tristeza e só vi alegria”.
Entre os pacientes ilustres estão a escritora Clarice Lispector, que fez fisioterapia no espaço para recuperar os movimentos da sua mãe direita, queimada em um incêndio em seu quarto. Lá, ela reencontrou seu amigo e dramaturgo Lúcio Cardoso, que a incentivou a publicar “Perto do Coração Selvagem”, um de seus best-sellers. A ocasião foi, inclusive, parar em um de seus livros.
“Ora ouço ele me garantir que eu não tivesse medo do futuro porque eu era um ser com a chama da vida. Ele me ensinou o que é ter a chama da vida. Ora vejo-nos alegres na rua comendo pipocas. Ora vejo-o encontrando-se comigo na ABBR, onde eu recuperava os movimentos de minha mão queimada e onde Lúcio, Pedro e Miriam Bloch chamavam-no à vida. Na ABBR caímos um nos braços dos outros” (Clarice Lispector, “Lúcio Cardoso”).
Ainda na literatura, a fundação foi carinhosamente citada no livro, “O Rio de Clarice: passeio afetivo pela cidade”, publicado pela Autêntica Editora. A obra é um guia que revela um Rio onde a escritora viveu durante 28 anos, em um passeio guiado pela professora Teresa Monteiro, biógrafa da autora.
Um dos principais objetivos da fundação é a busca da inclusão social através da arte, contribuindo na reabilitação de artistas plásticos, como Luciano Alves e Maria Auxiliadora, que, graças ao tratamento realizado no espaço, pôde retomar a pintura e levar seus quadros novamente para as capitais mundiais da arte, como França e Itália.
– Eu sabia da dificuldade em segurar um pincel, quem diria os movimentos finos tão necessários. Posso dizer que ultrapassei todas as barreiras que se apresentaram, com mais de 100 telas pintadas – afirma Maria, que têm seu quadro exposto na Galerie Thuillier, em Paris, e foi uma das convidadas para expor em Milão, em 2008.
CEAPES-ABBR como pilar educacional da comunidade científica
Ao longo do ano passado, o Centro de Estudos, Aperfeiçoamento e Pesquisa (CEAPES) da ABBR realizou diversas atividades voltadas para o desenvolvimento técnico-científico, buscando priorizar e fomentar debates sobre assuntos cruciais na área da saúde, de modo a também reforçar a importância da formação continuada e da atualização profissional.
Dentre as ações promovidas ao longo do ano, tivemos a elaboração e a execução dos seguintes eventos: “Simpósio sobre Serviço Social – Reabilitação, Cuidado, Família”; “Transtorno do Espectro Autista: como entender e abordar esse fenômeno?”; “Cannabis medicinal: mito ou realidade?”; “Jornada ABBR: O uso da toxina botulínica na reabilitação”, sendo o último em parceria com a IPSEN e a Faculdade Presbiteriana Mackenzie Rio.
Outra atividade importante do CEAPES-ABBR tem sido a realização de estágios supervisionados na Graduação e na Pós-Graduação. No ano de 2023, foram desenvolvidos estágios de Graduação nas áreas de Fisioterapia, Fonoaudiologia, Musicoterapia, Psicologia, Serviço Social e Terapia Ocupacional. Para os estágios de Pós-Graduação em Fisiatria, foi feita uma parceria com a Pontifícia Universidade Católica do Rio (PUC-RIO) e a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Novidades no tratamento do Transtorno de Espectro Autista
Além da reabilitação de pequenas e grandes lesões, a ABBR criou um novo espaço totalmente equipado para a prática de diversos métodos e terapias, que pacientes com o Transtorno de Espectro Autista (TEA) necessitam para o seu pleno desenvolvimento.
Atenta à demanda crescente de tratamentos especializados para esses pacientes, a instituição firmou uma parceria com a Recriando – Reabilitação Multidisciplinar (@recriandoreabilitacao), que trouxe uma experiência de 10 anos neste segmento. O espaço Recriando Polo ABBR iniciou suas atividades em abril de 2023, atendendo especialmente o público infanto-juvenil.
A rede ampla de serviços multidisciplinares para as necessidades dos pacientes de TEA abrangem as áreas de fisioterapia, terapia ocupacional, fonoaudiologia, psicomotricidade, psicologia ABA e TCC, musicoterapia, psicopedagogia, fisioterapia aquática e seletividade alimentar.