A bala na cabeça e o cansaço de todos nós

Para Alencar, sem ações efetivas, continuaremos enxugando gelo. Que descansem em paz Gisele e outros 104 que perderam a vida no Rio que envergonha.

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Imagem criada por Inteligência Artificial

A bala, desferida por uma pistola, atravessou o vidro e acertou a cabeça da médica e capitã de Mar e Guerra Gisele Mendes de Souza e Mello, de 55 anos. Respeitada e querida pelos colegas e trabalho, Gisele morreu num local destinado a salvar vidas: o Hospital Naval Marcílio Dias, no Engenho Novo, de onde era superintendente. No momento do incidente, uma operação da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) acontecia na comunidade do Gambá, nas proximidades do hospital. Dias depois, a Marinha ocupou as ruas do entorno da unidade com oito imponentes blindados. Era preciso dar alguma resposta de impacto. Resposta absolutamente, sabemos todos, ineficaz e constrangedora. O efeito prático: algumas imagens na mídia e o asfalto prejudicado em função do peso do maquinário de guerra.

Viver no Rio é experimentar, todos os dias, um misto de sentimentos. A metrópole oferece prazeres indescritíveis por sua privilegiada geografia, que conjuga maciços, cachoeiras, florestas e praias espetaculares. Há horizonte, escape, conexão com o natural. Ao mesmo tempo, a ocupação de territórios por grupos criminosos de toda ordem – abastecida pela corrupção dos órgãos públicos – traz dores e desesperanças. Somente neste 2024, a Região Metropolitana do Rio teve 105 vítimas de balas perdidas neste ano, das quais 23 morreram. Pelo menos 25 crianças baleadas – quatro morreram. Inaceitável. Balas que destroem famílias, sonhos, futuros. Traumas perenes.

Há oito anos, a Assembleia Legislativa do Rio produzia um documento final, bem resumido e detalhado, sobre o descontrole das armas no Estado. Era o resultado da CPI das Armas, presidida por Carlos Minc (PSB), com vice-presidência de Marta Rocha (PDT) e relatoria de Luiz Martins (então no PDT, hoje no União Brasil). Com 19 páginas, o documento apontou que, de um total de 58.476 armas de fogo pertencentes às empresas de segurança privada no Estado, 17.662 tinham sido classificadas como “roubadas, furtadas, ou perdidas”, ou seja, alimentaram traficantes de drogas, milicianos e outros bandos, quadrilhas ou organizações criminosas entre 2005 e 2015. Mais de 1.605 armas extraviadas por ano. Quatro por dia. Isso sem considerar desvios de outras ordens.

O relatório pede mais cooperação entre os órgãos de segurança da União, estados e municípios. Sugere o uso de chips na identificação das armas das polícias, aprovação de lei estadual obrigando ao rastreamento de armas e de lei federal garantindo o direito de acesso aos bancos de dados de registro de armas do Exército (Sigma) e da Polícia Federal (Sinarm) às forças de segurança federais e estaduais.

Urgem fiscalizações de fronteiras e rodovias e ações contra os braços do baronato do tráfico e da milícia – que vivem muito bem obrigado, e bem longe das comunidades. A situação é gravíssima e a PM, também vítima de um sistema corrupto, só entra quando a porta já foi escancarada – a lógica do conflito, que amplifica riscos, se dá quando falhamos em tudo. Sem ações efetivas, continuaremos enxugando gelo. Que descansem em paz Gisele e outros 104 que perderam a vida no Rio que envergonha.

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