Alberto Gallo: O calabouço da economia brasileira

O que está acontecendo com o Setor do Saneamento é uma ilustração de como os atores políticos podem destruir o valor Brasil, ao desmontarem os arcabouços institucionais

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Foto: Fábio Caffé (Coordcom/UFRJ)

Tudo o que desejamos é que nosso país possa se desenvolver em todo seu potencial com crescimento econômico e social. Assim, num momento de novo governo, nossa torcida é pelo sucesso das políticas públicas ora implantadas e que possam ser coroadas de acertos e reflexos positivos para todo o povo brasileiro. Diferente do olhar de uns que torciam pelo fracasso de programas do passado, e que no extremo até celebravam de forma cretina, o número de mortes pela Covid, como forma de fazer política. Era o famoso “quanto pior, melhor”.

Mas na democracia é importante um diálogo aberto e respeitoso. Um debate de ideias e críticas, e inclusive elogiando acertos e marcando pontos de atenção. Afinal, é exatamente o processo político onde o povo escolhe um programa e propostas de ações governamentais com alternância de poder, que chamamos de democracia. No Brasil essa escolha acontece pelas urnas com a eleição do executivo, na figura de um presidente, governadores e prefeitos, mas também pelo poder legislativo através dos deputados, senadores e na esfera municipal, dos vereadores. Estas duas instâncias, e juntamente com o poder judiciário, compõe o sistema proposto por Rousseau para a partilha do poder do Estado em três poderes e assim evitarmos a tirania.  Cumpre observar que é muito bem-vinda essa alternância de visões no governo. Ora uma visão mais liberal, sucedida por uma visão de Estado mais centralizadora. Melhor seria se tivéssemos ciclos mais suaves e longos, mas devemos entender a história que se desenrola no picadeiro, mesmo se alguns atores centrais por vezes fazem movimentos estranhos e ocultos atrás das cortinas, movimentos nada republicanos.  

A arte da política deveria ser em teoria, quando as melhores lideranças da sociedade, aquelas mais virtuosas e sábias, se colocam a serviço do bem comum. Quando colocam seu tempo privado, para trabalharem pelas decisões justas e para construção de soluções aos problemas do grupo, sem pensar no benefício pessoal.  Essa é a visão de Platão, em sua obra “A república”, porém como a teoria é diferente da prática, e ainda mais no circo “brasiliano”, o que temos no cenário político é uma “dança de interesses privados” que trabalha pelo patrimônio de uma elite política e econômica em detrimento do interesse da maioria do povo.  Essa presente reflexão, busca pontuar o conflito do discurso político e das propostas de revisão de rumos, que na ânsia de desqualificar qualquer ação pretérita, acaba por condenar o país ao voo de galinha

No linguajar da política econômica, o arcabouço institucional é como um esqueleto ou estrutura de princípios que vão ordenar um setor da sociedade. Há um debate atual e necessário sobre as alterações no nosso regime fiscal e que devem ser implementadas através de conjunto de regras, normas, leis e procedimentos que possam viabilizar as finanças públicas, já que os programas de investimentos e operação do Estado demandam mais recursos do que há previsto na arrecadação. Não vamos aprofundar neste momento os aspectos das propostas do novo arcabouço fiscal, das qualidades e dos furos que já podem ser verificados no Plano de Haddad, e de como o aumento de gastos públicos vão impactar em impostos e o pior, na inflação que é um mecanismo de “imposto”, perverso sobre os mais pobres. Vamos concentrar o entendimento numa maldade que a política faz com o futuro dos brasileiros, através da destruição do marco do saneamento.

Para resgatar a história recente, a Lei 14.026 de 2020, veio regulamentar e atualizar o setor do saneamento, que apresentava um vergonhoso padrão de atendimento de apenas 43% de esgoto tratado, segundo a ANA (agência nacional de águas). Ou seja, quase 100 milhões de pessoas não tinham esgoto tratado no Brasil, pois não havia um compromisso de atendimento e nem a competição do setor. Cumpre observar que até essa data, o serviço era prestado predominantemente das empresas estaduais públicas, que em sua maioria não dispunham de mecanismo para financiar a expansão do sistema e que eram ineficientes por conta de uma gestão politizada.  O novo marco, com metas ambiciosas de atendimento de 99% da população com água potável e de 90% da população com coleta e tratamento de esgotos até 31 de dezembro de 2033; incentiva a participação do setor privado, com atração de investimentos e de uma gestão comprometida com resultados, mas mantém a água como um bem universal de acesso social.  Dessa forma os novos contratos buscam reduzir as perdas de produção, hidrometração e acesso a comunidades antes mal atendidas, como as populações rurais e de aglomerados urbanos. A tarifa social foi expandida, os modelos de governança e transparência são priorizados e o principal é que água continua sendo entendida como benefício de todos, porém com entendimento que há um custo social para sua produção, tratamento e distribuição. E que da mesma forma o tratamento do esgoto é um cuidado com o meio ambiente que beneficia a todo o povo. Vale destacar que a ANA, recebe a missão de regulamentar, criar normas de referência para todo o setor, muito embora existam agências estaduais e municipais encarregadas da fiscalização dos contratos e dos serviços.  Há muitos aspectos a serem exaltados do marco do saneamento conforme proposto pela lei de 2020, como a extinção dos contratos de programa, a regionalização, o controle social e a força dos municípios e da solução local.  E como consequência desta ação pública, foi o imediato impacto sobre o setor que em poucos anos apresentou um rearranjo dos serviços, trouxe investimentos que já mudaram o cenário de algumas cidades e das outorgas com recursos que entraram para os cofres de estados e municípios.    Cumpre observar que o marco do saneamento, foi uma reforma democrática, amplamente discutida no congresso nacional, durante quase uma década e com a participação de representantes do povo. Portanto, assusta a quem defende a democracia, quando o movimento político de um decreto do poder executivo, ainda que eleito com 52% venha a destruir os ganhos e conquistas do setor. A pergunta que se faz é: – A quem interessa a desconstrução de avanços? 

A eleição majoritária resultou em um país dividido em duas metades, numa eleição marcada por narrativas e casualidades. Mas uma vez concluído o processo, o que se espera é que os vencedores construam um entendimento de soluções com diálogo e debates para uma via de entendimento nacional. Não faz sentido a continuidade do clima de radicalismos que não propõe soluções de avanço. O chamado voo de galinha é aquele em que nunca decolamos, pois quando se está tomando impulso para voar, você volta ao solo, à estaca zero. É como uma equipe de pedreiros que começa a construção de uma casa. Muda o mês e o dono da obra elege outro grupo para continuar a obra, mas quando há substituição do time, todas as paredes que estavam levantadas são jogadas ao chão para se iniciar tudo de novo. No caso do saneamento, o que se percebe é algo bem cruel com o povo, pois se viola o debate democrático que deve ser conduzido no Congresso Nacional e ataca alguns avanços como a possibilidade para se executar os serviços sem licitação através de empresas públicas e sem a capacitação correta, quando não há ondições econômicas de sustentabilidade. Isso significa que para o financiamento de novos contratos, poderá haver uma dotação através do orçamento estatal que aumenta a dívida pública e a médio prazo inviabiliza os entes subnacionais ou que haverá pressão inflacionária.

E nesse sentido o decreto que altera o novo marco do saneamento joga contra o interesse do usuário, pois aloca serviços no setor público e retira o incentivo do privado que tem maior capacidade de conduzir obras e gestão em condições de eficiência. Nossa visão é de que o decreto claramente provocará retrocessos, afasta investimentos, sobrecarrega as contas públicas, retira outorgas públicas e oportunidades para os Estados, reduz a capacidade de cumprimento das metas para 2033. Enfim, parece um gol contra do governo, que inclusive desqualifica a ANA, que recentemente tem feito um grande esforço para responder à altura diante de suas novas atribuições.   

Não sabemos a quem interessa a desconstrução dos avanços. Torcemos pelo sucesso do novo governo e para a melhoria do bem-estar dos brasileiros. Especialmente do povo mais pobre e vulnerável e que é diretamente beneficiado por políticas como o saneamento.  Não entendemos claramente quem são as mentes brilhantes que propõe políticas de curto prazo, e que vão contra uma visão estratégica de estado. Parecem atender interesses específicos. Não fica claro se são reformas do interesse de alguns partidos ou lideranças, ou de setores do governo. O fato é que para construção de um entendimento nacional é preciso mais diálogo e menos radicalismo institucional. Parece que esse time além de não ler livros de economia, também se esquece das lições do passado e insiste em teses que já se mostraram erradas, atrasadas e com alto custos social.  A forma como se articulam os arcabouços estão se configurando como prisões subterrâneas, escuras e misteriosas. São cárceres que vão aprisionando a capacidade de articulação política, do diálogo e que retiram a liberdade da economia. Ou os políticos tomam juízo e se prestam a dialogar com sabedoria para construir uma economia voltada para o bem comum ou vamos nos afundando nesses calabouços que são verdadeiras armadilhas para a democracia.

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1 COMENTÁRIO

  1. Qual a vantagem prática da privatização/concessão do serviço a entes privados? Há competição entre diferentes empresas? Os consumidores do município do Rio de Janeiro e dos outros atendidos pela extinta CEDAE podem mudar de fornecedor se estiverem insatisfeitos com o serviço prestado? Qual o volume de investimentos na ampliação do sistema que não seja de recursos públicos? Se o serviço de saneamento é de interesse público e um direito constitucional de todos, como o público pode intervir em uma empresa privada? Quando o serviço é estatal, o público pode, na pior das hipóteses, mudar seus representantes no Poder Executivo e interferir na administração da empresa.

    Quanto ao argumento de que o Estado investe pouco na ampliação e melhoria do serviço, a solução é simples: basta reduzir drasticamente os gastos estatais com banqueiros privados que vai sobrar mais dinheiro para investir na população. Paralelamente, basta também aumentar as receitas públicas tributando mais as grandes empresas e os grandes milionários, e impedindo que seus astronômicos lucros saiam do país e vão parar em esconderijos no exterior.

    Quando se fala de políticas públicas, está se falando em prioridades nos gastos públicos, e historicamente, um pequeníssimo grupo de milionários privados é que abocanha a maior parte do bolo, através de isenções fiscais, subsídios, legislação amiga, e demais favorzinhos (como concessões/privatizações) que recebem de políticos e de altos funcionários públicos que estes milionários mantêm em suas folhas de pagamentos/propinas.

    Cabe a cada eleitor pesquisar com cuidado quem financia a campanha e a vida dos candidatos a cargos públicos e entender a quem estes políticos vão prestar favores caso cheguem lá. Via de regra, financiamento privado de campanha atende a interesses privados, e financiamento público de campanha defende interesses públicos.

    O que é inaceitável é colocar um serviço de interesse público sob controle de empresários privados.

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