In memoriam Sr. Jesus Barros
Meu dileto amigo
Farmacêutico responsável pela antiga Farmácia Brasil, em Ramos
Durante a Idade Média, o distanciamento social e geográfico entre os povos e a falta de informações e conhecimentos sobre o corpo humano impediam uma real compreensão das doenças, sua disseminação e tratamentos.
No século VI, registrou-se uma primeira grande epidemia, a praga de Justiniano, que devastou o Império Bizantino, acometendo cerca de 5 mil pessoas por dia e se expandiu para Itália, Síria, Palestina e antiga Pérsia. Dois séculos depois, outro grande surto, ainda sem o conhecimento dos agentes responsáveis pela origem e formas de contágio, atribuído a fatores externos como passagem de cometas, conjunções astrais ou místicos, como castigo divino.
Segundo artigos publicados pelo Conselho Federal de Farmácia, as primeiras boticas surgiram na França e Espanha no início da Baixa Idade Média, por volta do século X, quando a Medicina e a Farmácia eram uma única profissão.
Por volta de 1350, quando a Peste Negra apresentou sua face devastadora atacando cerca de um quarto da população europeia, iniciou-se a compreensão das infecções, porém muito tardaria para estudos mais detalhados das causas e possíveis cuidados terapêuticos.
Provavelmente, foi no século XVI que houve uma maior organização na pesquisa sistemática de princípios vegetais e minerais ativos capazes de curar algumas doenças, muita coisa herdada de estudos realizados pelos antigos alquimistas medievais. Delineava-se a origem das boticas, futuras farmácias.
No século XVII, devido ao grande surto de hanseníase na França, o rei Luís XIV ampliou o número de farmácias e implementou outras iniciativas para atender à saúde pública.
Foi durante os setecentos que a Farmácia se separou da Medicina, cada qual com sua atribuição: o diagnóstico pelo médico e a produção de medicamentos pelo farmacêutico ou boticário.
No Brasil, as boticas vieram com a colonização portuguesa, em meados dos quinhentos, com a chegada de Diogo de Castro, boticário trazido por Tomé de Souza, quando da fundação de Salvador, em 1549. Segundo as Ordenações Régias, o acesso a medicamentos só aconteceria se nas expedições estrangeiras houvesse um responsável, fosse um cirurgião-barbeiro ou mesmo algum tripulante conhecedor das drogas disponíveis.
Com a chegada dos Padres Jesuítas, a função de “boticário” se consolidava, pois alguns religiosos exerciam a prática da medicina, cuidando dos enfermos, enquanto outros preparavam medicamentos e ampliavam seus herbanários, como o Padre José de Anchieta.
A partir de 1640, houve a “oficialização” das boticas no Brasil, transformadas em comércio regular, sob responsabilidade de boticários formados em Portugal, que manipulavam e produziam medicamentos conforme a farmacopeia e a prescrição médica.
Somente no Império, em 1832, foi fundado o curso farmacêutico, oferecido pelas faculdades de medicina do Rio de Janeiro e da Bahia, estabelecendo-se, a partir daí, que ninguém poderia ter botica ou preparar medicamentos sem o título conferido oficialmente pelas instituições responsáveis. Como exemplo, temos Joaquim Luís da Silva Souto, boticário estabelecido na antiga Rua Direita, que atendia à Família Real, depois morador do largo que incorporou sua profissão como nome, o Largo do Boticário, no Cosme Velho.
Menos de uma década após, o francês Benoit Jules Mure trouxe os conhecimentos de Homeopatia, cujas farmácias atingiram grande apelo popular, principalmente entre os mais pobres, sem acesso à medicina tradicional.
A segunda metade do século XIX assistiu ao surgimento de duas grandes farmácias no Rio de Janeiro, sede da Corte Imperial e futura capital da República: a Granado, fundada em 1870 e a Pacheco, em 1892, ambas ainda existentes em 2022.
Um outro estabelecimento merece destaque especial, a Pharmacia Cordeiro, à rua da Constituição, 45, cujo sobrado eclético é bem tombado municipal, porém não mais abriga seu uso original. Além do comércio de medicamentos, o local funcionava como endereço de atendimento espiritual do Dr. Bezerra de Menezes, que falecera no final do século XIX. O interior manteve, até os primeiros anos do século XXI, uma configuração próxima do original, com seus balcões, prateleiras envidraçadas e pequeno laboratório de manipulação aos fundos.
Além dos estabelecimentos mais afamados, farmácias surgiram por toda a cidade, contemplando bairros que se formavam, definindo um comércio básico de atendimento imediato complementado por quitandas, açougues, padarias e botequins.
Geralmente eram edifícios térreos, duas ou três portas de enrolar em sua fachada eclética, balcões para atendimento do público e, aos fundos, o laboratório e sala para pequenos atendimentos, como um curativo emergencial tratado com éter, iodo, antes da gaze e esparadrapo. Nas paredes, prateleiras com a panaceia de medicamentos, conhecidos de cor pelo responsável: xaropes, comprimidos, elixires, emplastros, colírios…
Ali os primeiros farmacêuticos diplomados atendiam à clientela, principalmente os primeiros socorros, sugerindo medicamentos e sua posologia, aplicando as temíveis e dolorosas injeções de penicilina ou aquelas que imediatamente levavam o gosto de eucalipto à boca, ou ainda, para o tratamento rápido das aterrorizantes doenças venéreas, com a maior discrição e algum conselho paternal.
Naquelas salas azulejadas, aos fundos do salão de vendas, com instrumental de manipulação como tubos de ensaios, beckers, pipetas, garrafas de cores e formatos variados, ocorria o ritual. As peças de suplício quedavam-se sobre o balcão, os êmbolos de vidro, as seringas, um recipiente de vidro colocado sobre a chama para esterilizar…Não havia material descartável, nem por isso grassavam infecções. Ao lado, aguardando, as ampolas simples ou conjugadas, ou ainda o líquido que seria injetado em um pequeno vidro com pó, agitado, dali direto às nádegas dos mais novos ou nos braços mais corajosos que seguravam um possível choro, enquanto os olhos marejavam. Os pequeninos não se preocupavam com a opinião alheia e da área de venda era possível ouvir gritos, choro e ranger dos dentes, como no versículo bíblico de Mateus.
As grandes redes de drogarias, a partir das últimas décadas do século XX, pouco a pouco absorveram as farmácias tradicionais e aquele atendimento personalizado do farmacêutico que, à feição de um médico de família, conhecia sua clientela, definhou, se aproximando da extinção, substituído por funcionários treinados por equipes especializadas, preparados para atingir metas e agradar aos gestores de plantão.
Granado, originalmente na antiga Rua Direita, onde permanece na atual Primeiro de Março e Pacheco, também no Centro, ambas em endereços e edifícios tradicionais, distribuem-se pela cidade anunciadas por grandes letreiros padronizados como redes de fast-foods. A Pharmacia Cordeiro fechou. As homeopáticas precisaram ampliar o oferecimento de produtos de manipulação, incrementando os cosméticos… Muitas fecharam ou mudaram o endereço.
Indispensável algumas homenagens muito particulares aos farmacêuticos que conheci como Jesus, Rui, Manoel, Naum, De Farias e tantos outros, singulares personagens de nossa infância e adolescência, nosso pronto socorro diário, cujas farmácias fecharam ou tornaram-se um supermercado de medicamentos, que também vendem refrigerantes, doces e até sorvetes. Medem pressão e glicose com promotores de vendas gritando à porta, junto a figuras fantasiadas e bandinhas de música, para atrair público.
Saudosismo? Sim, de uma cidade mais humana, onde se estabelecia naturalmente o contato social e a simples presença do farmacêutico-proprietário-amigo acima de tudo era o principal fator de atração e fidelidade para auxiliar com conhecimento e boa vontade as doenças do corpo e muitas vezes também da alma.