A Constituição protege a propriedade, porém determina que ela deve atender sua função social. Para garantir o atendimento dessa função, ela faculta ao Município exigir, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, nos termos da lei federal, que o proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, promova seu adequado aproveitamento. Em caso de descumprimento, o Município pode impor sucessivamente ao proprietário: o parcelamento ou edificação compulsórios, o IPTU progressivo no tempo e a desapropriação com pagamento em títulos da dívida pública.
Baseado nisso, o Prefeito do Rio de Janeiro enviou à Câmara Municipal, no dia 24 de maio de 2024, o Projeto de Lei 3.237, que institui instrumentos para o cumprimento da função social da propriedade no município. O PL 3.237/2024 entrou na ordem do dia no início de novembro.
O PL 3.237/2024 é uma mera transcrição de dispositivos do plano diretor do Rio acrescida de algumas inovações. Sua justificativa é o combate à grande quantidade de imóveis desocupados ou subutilizados em áreas bem servidas de infraestrutura, especialmente o Centro. Contudo, ele incorre em diversos vícios jurídicos.
Primeiramente, o Estatuto da Cidade, lei federal que baliza o PL 3.237/2024, define solo urbano subutilizado como aquele “cujo aproveitamento seja inferior ao mínimo definido no plano diretor ou em legislação dele decorrente”. Aproveitamento do solo é a relação entre a área edificada e a área do terreno. Assim, se o planejamento municipal define, por exemplo, que o aproveitamento mínimo em determinada zona da cidade é de 50%, isso significa que um imóvel de 500 m² nessa zona com menos de 250 m² de área construída está subutilizado.
Logo, o PL 3.237/2024 contraria o Estatuto da Cidade, ao restringir a definição de subutilização aos imóveis com área superior a 250 m² que não atinjam o aproveitamento mínimo. Além disso, considera subutilizados, independentemente de seu aproveitamento, os imóveis com estacionamento de veículos ao nível da rua como atividade isolada ou com 60% de suas unidades autônomas desocupadas.
Depois, de acordo com a Constituição, as obrigações de fazer que, descumpridas, ensejam a pena de IPTU progressivo no tempo são apenas o parcelamento e a edificação compulsórios. A utilização compulsória não tem amparo constitucional. Portanto, o solo urbano edificado acima do mínimo fixado no plano urbanístico, desde que não se trate de obra paralisada ou edificação em ruínas, deve ser havido como adequadamente aproveitado e é imune à progressividade temporal do IPTU.
E finalmente, o PL 3.237/2024 impõe a utilização compulsória de imóveis tombados e preservados subutilizados ou não utilizados, com o objetivo de assegurar a recuperação, conservação e valorização do patrimônio cultural da cidade. Todavia, a subutilização e a não utilização são situações imobiliárias concernentes ao grau de aproveitamento do solo urbano, sem relação com o grau de preservação da edificação. Ademais, o dever de conservação e reparação dos imóveis tombados e preservados já decorre de sua função social, mesmo quando fora da área incluída no plano diretor.
Para além da questão jurídica, o Poder Público não deve equiparar toda retenção de imóveis a um movimento especulativo de mercado. A exigência de adequado aproveitamento do solo urbano não edificado, subutilizado e não utilizado deve ser racional, atenta, sim, à infraestrutura urbana disponível, mas sem descurar da demanda imobiliária existente. Essa exigência não se pode fundamentar apenas em aspectos urbanísticos, também deve atentar para os elementos econômicos da equação.
O expressivo estoque de edificações ociosas é sintoma de um problema econômico da cidade, não a causa. A depressão econômica do Centro, ainda combalido pela pandemia e pelo crescimento do trabalho remoto, e da Zona Norte, flagelada pela violência endêmica, não será eliminada com “canetadas”.
A Prefeitura deve reprimir os imóveis abandonados, não as edificações ociosas. Conforme a legislação federal, o abandono se presume quando, cessados os atos de posse, o proprietário deixar de satisfazer os ônus fiscais do bem por cinco anos e este não estiver na posse de outrem. Os imóveis abandonados podem ser arrecadados pelo Município, como bens vagos, e, após três anos, passam ao domínio municipal, sem necessidade de desapropriação.
As edificações ociosas devem ser enfrentadas com estímulos econômicos, como o Programa Reviver Centro, e com a melhora do ambiente de negócios e da segurança jurídica. Afinal, em níveis saudáveis, a ociosidade imobiliária atua, inclusive, como um mecanismo natural de mercado de controle inflacionário.
Este é um artigo de Opinião e não reflete, necessariamente, a opinião do DIÁRIO DO RIO.
Custódio é doutorando em Direito Econômico e Economia Política na Universidade de São Paulo. Mestre em Direito Urbanístico e Direito Ambiental pela Universidade de Coimbra. Advogado. Conselheiro do Conselho da Cidade do Rio de Janeiro.