O Brasil tem um jeito singular e violento de tratar a metade da sua população que se assume (porque é) preta, a despeito de todos os tratados e acordos de que faz parte para garantir igualdade de direitos independentemente da cor da pele que se tenha. O Rio de Janeiro tem um jeito igualmente singular e violento de tratar a sua população preta, seja ela nativa ou tenha optado por viver aqui por circunstâncias outras. Em dezembro de 2021, um levantamento da Rede de Observatórios da Segurança mostrou que nós somos o estado com o maior número de pessoas negras mortas pelos agentes de segurança, com um negro morto pela polícia a cada quatro horas. Ficamos à frente de São Paulo, o estado mais populoso do país. Os números devem dizer algo sobre quem somos e para onde caminhamos.
O ano de 2022 mal começou e já parece velho, tamanho e espantoso é o número de casos de desrespeito e afronta aos direitos humanos, e vou me restringir aqui ao Rio de Janeiro. À frente da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, eu posso dizer que não tivemos trégua nesses pouco mais de dois meses de um ano já exaustivo pelo que exige de nós, que somos forçados a lutar cotidianamente como se vivêssemos em guerra.
Relembro aqui o que não podemos deixar cair no esquecimento. No dia 25 de janeiro, o congolês Moïse Mugenyi Kabagambe foi espancado até a morte, por cinco pessoas e durante 15 minutos, após cobrar de seu chefe o valor equivalente a dois dias de trabalho no quiosque onde fazia diárias, na Barra da Tijuca, Zona Oeste. No dia 2 de fevereiro, o repositor de estoques num supermercado Durval Teófilo Filho foi baleado no abdômen pelo seu vizinho Marco Aurélio Alves ao chegar em casa do trabalho; teria sido “confundido” com uma bandido, já que era noite, conforme alegou o atirador, sargento da Marinha, que não titubeou em fazer três disparos. Doze dias depois, o vendedor de balas Yago dos Santos foi morto a tiros por um policial militar de folga, próximo à estação das barcas, no centro de Niterói, região Metropolitana, também após ser “confundido” com assaltante
Moïse tinha 24 anos; Durval, 38 anos; Yago, 21. Os três eram pretos. Os três viviam em condições precárias. Em um estado pseudobranco como o nosso, é de estarrecer que mortes de pessoas negras não provoquem reações, nem revolta ou comoção. Onde estão a empatia, sensibilidade e o apreço pela vida que deveriam estar aqui, nesse espaço em que nós nos denominamos sociedade? Que tecido social é esse, que criminaliza territórios e que tolera (quando não aplaude) o espancamento e a tortura dos seus? Que racismo é esse que não se assume?
Sou preta – condição imutável -, e estou jovem. Como muitos da minha geração e nas mesmas condições, cheguei à universidade, ambiente que me inflou o peito e o de tantos outros que experimentaram a breve ascensão social proporcionada por políticas públicas educacionais. Na real, seguimos suspeitos, como Durval, como Yago; seguimos desamparados, como Moïse, que só queria um chão seguro para viver. Retrocedemos, basta olhar à volta. Com o racismo e a pobreza com alvo prévio, perdemos todos. Na boa, se lutarmos juntos por menos violência, ganharemos todos.