Demolição do Viaduto 31 de Março – Delírios de uma primavera carioca

O urbanista William Bittar critica o projeto de demolição do Viaduto 31 de Março

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Nos últimos anos do século XVI, William Shakespeare escreveu a peça Sonho de uma Noite de Verão, provavelmente como presente para um casamento nobre.   Entre tantos personagens, acontece a transformação de Fundilhos, uma criatura egocêntrica, em um burro falante.

No final do século XVIII, Tomás Antônio Gonzaga escreveu as Cartas Chilenas, relatando desmandos e delírios de um governador, o fanfarrão Minésio, ávido por se eternizar por suas obras.

Desiste, louco chefe, dessa empresa:
Um soberbo edifício levantado
Sobre ossos de inocentes, construído
Com lágrimas dos pobres, nunca serve
De glória ao seu autor, mas, sim, de opróbrio

Quase no final da primavera carioca de 2024, assistimos a mais um delírio municipal que se manifesta na obsessão por demolir viadutos como um passo para se eternizar, contando com a participação de alguns profissionais que vislumbram a possibilidade das luzes de holofotes imaginários, uma situação confusa como aquela da peça shakespeariana.

Outro fato curioso, que não é exclusividade da atual prefeitura, é construir equipamentos associados ao carnaval e ao samba próximos a cemitérios.

A Cidade do Samba foi construída junto ao Cemitério dos Ingleses, uma necrópole tombada como patrimônio estadual. Muito perto está localizado o Instituto Pretos Novos, onde antes havia um cemitério para africanos, muitos deles mortos durante a travessia do Atlântico, nas desumanas condições dos porões.

Entre tantas novidades, a atual proposta da prefeitura pretende implantar o Museu do Samba nas imediações do Cemitério de São Francisco de Paula (Catumbi), importante registro do período imperial e dos primeiros tempos de sepultamentos extramuros.

Abertura do Tunel Santa Barbara Demolição do Viaduto 31 de Março - Delírios de uma primavera carioca
Abertura do túnel Santa Bárbara, em foto de 1962. Revista Manchete, ed. 0545;

Qual seria a estranha ligação entre Samba e o Espaço dos Mortos?

Depois do projeto para a área da Leopoldina sem apresentação pública dos impactos possíveis, surgiu um estádio (tardio e necessário) para o Flamengo num nó viário conhecido, necessitando remanejamento de tubulação de gás, a cerca de dois quilômetros do Estádio de São Januário e três quilômetros do Maracanã, obra que o poder municipal defende como indispensável, com todas as vantagens imagináveis.

No final da primavera de 2024, o carioca é surpreendido pela proposta de demolição do viaduto 31 de março e a criação de uma área para valorizar o sambódromo. Tudo isso baseado em premissas com pouco ou nenhum esclarecimento convincente, a não ser depoimento dos interessados diretamente na aventura.

Qualquer estudante dos primeiros períodos do Curso de Arquitetura e Urbanismo aprende que é indispensável a apreensão preliminar da área de intervenção em todos os seus aspectos. Afinal, o papel (ou a tela do computador) aceita qualquer ideia, por mais mirabolante que possa parecer. Sonhar faz parte da profissão do Arquiteto, que celebra seu dia no próximo 15 de dezembro, data de nascimento de Niemeyer. Alguns sonhos foram responsáveis por obras fantásticas, referências na história da Humanidade.

No entanto, em situações complexas que envolvem condições de mobilidade e bem-estar da população, é o estudo detalhado que define a viabilidade em todos os seus aspectos e os impactos causados durante a execução e possíveis resultados após a conclusão.

A Transbrasil, como já comentamos em coluna anterior, é um exemplo de iniciativa que comprometeu o fluxo viário, transformando a via em grandes estacionamentos nas horas de maior demanda, após uma longa década de obras. As soluções paliativas não resolveram os problemas.

Defesa do automóvel? Não. Mas é preciso um transporte coletivo eficiente, seguro, com preços acessíveis, para atrair passageiros. Há anos a prefeitura adia a instalação de ar-condicionado nos ônibus e mais uma vez atendeu à solicitação das empresas para completar a refrigeração de toda frota em… março!  As tarifas não foram reduzidas como contraponto.

Retornando ao viaduto 31 de março, existem muitas perguntas já apresentadas por especialistas que não foram respondidas de forma objetiva, mas com evasivas e ivagações. Um túnel sob a linha férrea… e o canal que corta a Avenida Presidente Vargas naquele local? Os diversos cruzamentos que surgirão, como serão resolvidos? Talvez da mesma forma que ocorreu por onde passa o BRT…semáforos provocando intermináveis congestionamentos que, na situação atual, favorece aos famosos arrastões. E o “novo” edifício inspirado no Congresso Nacional? É necessário um clone da década de 1950 no coração da cidade? Já não basta o monolito de vidro preto comprometendo escala e volumetria da Passarela, com seu estranho “chapéu” lateral e uma fachada envidraçada voltada para o sol da tarde?

Como será resolvida durante e após as obras a circulação pelo túnel Santa Bárbara, inaugurado no início da década de 1960 para facilitar a ligação Centro-Zona Sul, com fluxo intenso em ambos os sentidos? Pelas estreitas ruas antigas do bairro?

Não foi apenas o acesso ao túnel que descaracterizou o Catumbi, como afirmou a prefeitura e “estrangulou” o sambódromo, comentário apresentado em recente entrevista por um dos autores da intervenção.  Vinte anos após o viaduto, a implantação da Passarela do Samba se encarregou de mutilar o que restou, apesar de muitas advertências de especialistas, inclusive sobre o partido adotado no projeto de Oscar Niemeyer.  A mesma passarela foi duplicada pela municipalidade em 2011, demolindo um conjunto de interesse cultural, a Fábrica da Brahma, alegando, através de seu representante no IRPH, que era o “projeto original”. Basta consultar os arquivos e croquis do arquiteto idealizador para constatar que a informação não procede.

Uma metrópole com a importância que tem o Rio de Janeiro não precisa e não deve, diariamente, ser predominante associada a futebol (os tais novos estádios), praias e samba (nova cidade do samba, bulevar do samba, terreirão do samba).

Esses elementos certamente são fontes de renda, atraem turistas, geram empregos, mas o habitante da cidade, carioca ou simplesmente morador, precisa muito mais para seu simples cotidiano: ônibus confortáveis, vias expressas, expressas, semáforos funcionando, praças cuidadas, além da segurança pública, obrigação do Estado, que não cumpre seu papel.

Não é a poeira e o ruído das próximas explosões de viadutos que transformarão um governante em faraó do século XXI, deixando sua pirâmide para eternidade, como fizeram no Egito ou Mitterrand, no pátio do Louvre, no século passado.

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Carioca, arquiteto graduado pela FAU-UFRJ, professor, incluindo a FAU-UFRJ, no Departamento de História e Teoria. Autor de pesquisas e projetos de restauração e revitalização do patrimônio cultural. . Consultor, palestrante, coautor de vários livros, além de diversos artigos e entrevistas em periódicos e participação regular em congressos e seminários sobre Patrimônio Cultural e Arquitetura no Brasil.

2 COMENTÁRIOS

  1. Volta Millôr. Volta Sergio Porto. Precisamos de inspiração para novos cronistas para refazer a Bíblia do Caos e o FEBEAPA. Dudu III está completamente delirante, não sei se é o medo de uma reversão política face ao comprometimento com a atual, que é irresponsável com a coisa pública. Uma pena, pois o Rio lidera políticas no Pais, mas infelizmente não está sendo no campo de obras e inovações arquitetônicas. Sem contar a conservação.

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