Ligo o celular e a luz se acende. Corro o dedo nos aplicativos de preferência, entre eles o Instagram, e vejo uma sequência ininterrupta de fotos naquele estreito retângulo. A bem dizer, o movimento é tão automático que, em certa altura, as imagens passam sem que me dê conta de suas especificidades. Simplesmente faço deslizar o dedo. De um modo geral, o que se vê são retratos de pessoas das mais variadas idades, etnias e classes sociais, que são fotografadas em espaços públicos e privados, posando vestidas ou seminuas, de forma artificial ou espontânea, adicionando à imagem citações ou textos autorais, com o simples propósito expositivo, dentro de uma rede social.
A impressão se repete há anos. Diante dos olhos (que um dia foram curiosos a tal respeito) deslinda-se um cenário democrático e monótono onde vejo uma república de vaidosos, da qual, inclusive, faço parte. Basta um simples acesso para nos depararmos com a povoada passarela do Instagram, onde desfilam diversas tipologias forjadas pelo capitalismo: o yuppie “bem-sucedido”, o hipster “gratidão”, o modelo fitness, o sex symbol, o influencer, o performático, esbanjando o mesmo caráter vaidoso.
Em virtude de tal problema crônico, que vem repercutindo no âmbito social, econômico e cultural, escolhi o tema da vaidade; sem nenhuma intenção de defenestrar ou zombar da rede social, da qual me assumo ser um usuário contumaz. A questão envolvida aqui é outra. Nasceu de minha perplexidade diante da rede social, mas não se restringe a ela apenas. O que me levou à redação do presente artigo é exclusivamente uma reflexão filosófica: a vaidade é um pecado? E, se for ou não for, por quê? O vaidoso da rede social é um pecador ou podemos lhe atribuir outro predicativo?
Através da literatura e do cinema conhecemos a lista dos sete pecados capitais e, consequentemente, sabemos que a vaidade se encontra entre eles. Mas somente mediante conhecimento filosófico e teológico se nos revela o que é um pecado capital e as consequências que ele gera. Segundo consta, para o catolicismo, a vaidade é o mais abominável dos pecados, pois dá margem para os demais pecados se manifestarem.
Em Confissões, o filósofo escolástico Santo Agostinho nos ensina o que é pecado e qual é sua causa. Depois, sem esmiuçar muito, define a natureza da vaidade. O pecado é uma tentação humana, por meio da qual a razão e o espírito se veem atraídos por falsos fantasmas que proporcionam “o deleite da carne, ao qual se não deve dar licença de enervar a alma”, enganando-os “muitas vezes” e arrastando-os para esse classe de desfrutes passageiros e ilusórios[1]. As tentações enredam o indivíduo “na deleitação de todos os sentidos e prazeres” afastando o espírito do maior dos prazeres que é Deus[2].
O pecado se manifesta na relação espírito-carne, a partir da qual um “falso intermediário (o demônio)” se vale da “licença para iludir a soberba humana”[3]. Passando-se por prazer paradisíaco, tal intermediário “finge, contudo, assemelhar-se com Deus”, fazendo o espírito crer que a matéria da tentação é válida[4]. Desta forma nos envaidecemos: acreditando que aquilo que a tentação nos fornece de prazer seja bom em si mesmo e que, por isso, basta que exista para produzir tal sensação. O espírito se sente preenchido quando a vaidade o tenta, alienando-se de sua causa real.
Para Agostinho a vaidade é uma espécie de ambição do mundo e, por isso, integra o terceiro gênero de tentações, quer dizer, de seduções produzidas pelo daimon enganador. As duas primeiras são a concupiscência da carne (gula) e a concupiscência dos olhos (a curiosidade). A vaidade é ambição do mundo, pois é a tentação que leva o indivíduo a “querer ser temido e amado” por outros; e essa tentação é pecado porque visa “encontrar uma alegria que não é alegria”, confundindo o divino com o demoníaco[5].
A linha mestra da vaidade é querer ser louvado pelos homens, não por amor a Deus, mas em vez de Deus, ou seja, para se assemelhar a ele, tomando em parte o aspecto divino. A vaidade é dotada de uma capacidade de potencializar o espírito, a partir daquilo que ouvimos os outros dizerem a respeito de nossa imagem, se ela é temida ou amada por aquilo que ela representa. E ela potencializa porque o louvor é um juízo de aprovação “saído da boca de uns lábios alheios” que aumenta “o gosto que experimento pela boa obra, seja ela qual for”[6]. Se, por causa da forma como louvam a imagem alheia, a pessoa se envaidece, é porque o louvor confirma certas impressões.
O louvor confirma se alguém é amado ou temido; e, assim, se aproxima da mesma impressão que Deus nos causa. Um vaidoso quer, aos olhos dos outros, parecer um divo e ser enaltecido pela imagem que transmite; ele estima o louvor, com a ajuda do qual “recolhe e mendiga votos e pareceres alheios”, fornecendo um estado glorioso que, segundo Agostinho, é vão[7]. Por isso mesmo a vaidade é uma vanglória.
De minha parte, apesar de concordar em alguns aspectos da fala de Agostinho, desobrigo-me de considerar a vaidade um pecado, na medida em que retiro a figura julgadora de Deus do centro do debate. Sem contar com tal prerrogativa transcendente, é possível pensar a vaidade sob outro ângulo, mais epistemológico do que teológico. Por isso, recorri ao gênio de Schopenhauer para traçar as linhas do meu argumento.
Está nos Aforismos para sabedoria de vida a seguinte definição de vaidade. Em primeiro lugar ela é uma representação, ou seja, um modo que o espírito tem de tomar consciência da existência das coisas. Nesse caso, a vaidade significa “a nossa existência na opinião dos outros”, uma “opinião favorável dos outros” que adula nosso espírito[8]. A observação de Schopenhauer me chama atenção porque ele notou na vaidade a sua real debilidade, sem apelar para o expediente teológico. Ele entendeu que vaidade é, na verdade, “uma fraqueza especial da nossa natureza” presente na relação representativa entre indivíduos e não entre indivíduos e Deus[9]. Por isso, não é exatamente um pecado.
Schopenhauer e Agostinho concordam no mesmo ponto: a vaidade sugere uma falsa ideia de paraíso, a partir da confusão que o indivíduo faz entre verdade e ilusão. O vaidoso se crê feliz porque foi representado pelos outros como divo obtendo a confirmação de que possui valor louvável. Está em jogo na vaidade a apreciação do valor que é feita por outros. Nessa tensão de expectativa frente à representação alheia se encontra a fraqueza humana, pois damos provas da incapacidade de tomarmos posse sobre nosso próprio valor, cabendo aos outros o poder de medi-lo com sua régua.
Além disso, a vaidade empobrece o espírito, pois o indivíduo se vê forçado a se vangloriar do pensamento dos outros sobre que impressões ele causa, mesmo que cada juízo que se faça a seu respeito seja vazio, superficial ou recalcado. A miséria humana é não estar seguro sobre sua real pessoa e se prender ao fato de que a felicidade vem de fora; e pior: não é verdadeira, mas representativa; logo, residente em uma mente estranha, interessada em lisonjear e iludir e não em dizer a verdade. Sendo assim, a vaidade rebaixa o valor do homem porque o impede de ser feliz sozinho e de saber valorar a si verdadeiramente, independente da aprovação ou reprovação de outrem.
Defendo que a vaidade é uma disfunção judicativa, ou seja, impotência espiritual que o indivíduo apresenta para valorar a si mesmo; dependendo então do juízo estranho e sendo levado a perseguir “infatigavelmente” louvores durante a vida, “com esforço incessante e sob milhares de perigos e dificuldades”; visando, como “fim último”, “elevar-se na opinião dos outros”, sendo temido e amado[10]. Tal disfunção reflete sinais patológicos, pois se trata de “um tipo de mania difundida universalmente, ou antes, inata” que retira o direito de conhecermo-nos por meios que dependem de nós[11].
As redes sociais inventaram o like como sistema de representação dentro do esquema vaidoso da pós-modernidade. Os likes substituem opiniões faladas com ícones em forma de coração, indicando que a imagem apreciada foi aceita com louvor. O vaidoso pós-moderno, com seu Iphone, em nada difere dos antepassados: continua agindo de modo empobrecido, mendigando opiniões que, no silêncio da angústia, “o consolam da infelicidade real”[12]. Cada like recebido, que as tipologias do Instagram mendigam em selfies e postagens, pinta o indivíduo como se fosse menos infeliz do que é, endossando a disfunção que o aliena do poder de julgar sozinho seu próprio valor.
Cada vez brota mais nas redes sociais um novo indivíduo disfuncional, cioso por recolher bagatelas diárias; que se aborrece quando não é adulado o suficiente, e que se infla de falsa alegria que logo se desfaz na liquidez do esquecimento, pois a roda da vaidade se move em um ritmo acelerado: são demasiados mendigos para socorrermos.
[1] AGOSTINHO, Santo. Confissões. Coleção Os Pensadores. Trad. J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina. Nova Cultural: São Paulo, 2000, livro X, §30.
[2] Idem, livro X, §35.
[3] Idem, livro X, §42.
[4] Idem, ibidem.
[5] Idem, livro X, §36.
[6] Idem, livro X, §37.
[7] Idem, livro X, §38.
[8] SCHOPENHAUER, Arthur. Aforismos para sabedoria de vida. Trad. Jair Barboza. Martins Fontes: São Paulo, 2006, p.61.
[9] Idem, ibidem.
[10] Idem, p.64.
[11] Idem, p.66.
[12] Idem, p. 61.
Este é um artigo de Opinião e não reflete, necessariamente, a opinião do DIÁRIO DO RIO.