Há 50 anos, morria Joãozinho da Goméia

Chamado à época pela imprensa de “Rei Negro”,“o maior babalorixá do Brasil” e até “Rei do Candomblé”, pai de santo faleceu em 1971. Como prova do respeito que conquistou, o enterro de Joãozinho da Goméia reuniu mais de 5 mil pessoas em Caxias, no cemitério do Corte Oito

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Hospital das Clínicas, São Paulo, sexta-feira, 19 de março de 1971, Joãozinho da Goméia é levado para uma mesa de cirurgia e não resisti ao procedimento que o libertaria de um tumor maligno no cérebro. Por estranha coincidência, no mesmo dia, seu terreiro em Duque de Caixas promoveria o Lorogun – uma das grandes cerimônias do Candomblé que significa o fechamento do terreiro para o período da Quaresma.

O corpo de João foi trazido de carro de São Paulo por um cortejo de dezenas de veículos, assim que chegaram à Caxias. Gitadê iniciou um movimento para que se organizasse uma grande romaria até o cemitério “para que sua obra jamais fosse esquecida”. O corpo ficou exposto durante 26 horas no terreiro num caixão dourado para que os fiéis e curiosos pudessem dar o último adeus.

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Funeral de Joãozinho da Goméia, Revista Machete / Foto: Adir Mera, 1971

Em 3 de abril de 1971, a revista “Manchete” noticiou: “Quando seu corpo chegou à sepultura, no cemitério de Caxias, Estado do Rio, um raio cortou o espaço, e desabou toda a água dos céus, ensopando as três mil pessoas que erguiam os braços e gritavam: Epa Hey, Iansã!”. A narração descreve o enterro de João Alves Torres Filho, chamado à época pela imprensa de “Rei Negro”, “o maior babalorixá do Brasil” e até “Rei do Candomblé”.

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Como prova do respeito que conquistou, o enterro reuniu mais de 5 mil pessoas em Caxias, no cemitério do Corte Oito. O relato sobre a cerimônia fúnebre pode conter excessos, mas não inverdades. Era uma tarde muito quente de verão e, quando desceram o caixão, o tempo fechou. Começou uma chuva intensa, com trovoadas. Uma manifestação de Iansã recebendo seu filho.

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Desespero de filhos de santo de Joãozinho da Gomeia durante funeral, sob as lentes das Revistas O Cruzeiro e Manchete

Quando morreu, em 1971, deixou 4.600 filhos e netos de santo. Sete dias após a morte de Joãozinho, os búzios foram jogados para que fosse indicado o herdeiro do trono da Goméia. Para surpresa de todos, a escolhida foi Sandra Reis dos Santos, a Sandrinha, aos nove anos de idade. Filha de mãe Kitala Mungongo, iniciada por Joãozinho, Sandra que é hoje mãe Seci Caxi, nasceu dentro da Goméia no dia primeiro de novembro de 1961, pelas mãos do próprio seu João, que também foi seu padrinho de batismo.

João Alves de Torres Filho nasceu na pequena Inhambupe, interior da Bahia, em 1914. Sua história com o candomblé começa em 1933, quando é iniciado pela tradição Angola. Aos 10 anos de idade, começou a sentir fortes dores na cabeça e a sonhar constantemente com um “um homem cheio de penas”. Avisos dos orixás que o fariam buscar a iniciação na religião e tornar-se o primeiro sacerdote do Candomblé de Caboclo realmente conhecido no país. Em outra fase de sua vida, refez o santo no Terreiro do Gantois com Mãe Menininha e eternizou-se como referência nas tradições do Candomblé: Angola, Bantu e de Caboclo.

Seu primeiro terreiro foi erguido num bairro chamado Ladeira de Pedra, mas logo foi transferido para o local que o tornou famoso, a ponto de incorporar o endereço ao próprio nome: Rua da Goméia. Em 1948, o pai-de-santo deixou a Bahia e mudou-se para o Rio de Janeiro, onde abriu casa no município de Duque de Caxias. Seu terreiro era feito com modestas instalações, o que não o impediu de tornar-se um local famoso.

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Joãozinho da Gomeia na capa da revista O Cruzeiro em reportagem sobre o candomblé

No carnaval de 1956 protagonizou um episódio que chocou o povo do Candomblé ao ser manchete de jornais e revistas fantasiado de vedete. Em entrevista a um repórter da revista O Cruzeiro, a mais importante da época, ao ser questionado se sua fantasia infringia as regras do candomblé, deu a seguinte resposta:

“De maneira nenhuma, meu amigo. Primeiro, porque antes de brincar eu pedi licença ao meu guia. Segundo, porque o fato de eu ter me fantasiado de mulher não implica desrespeito ao meu culto, que é uma Suíça de democracia. Os orixás sabem que a gente é feito de carne e osso e toleram, superiormente, as inerências da nossa condição humana, desde que não abusemos do livre arbítrio.”

O repórter, então, comentou ironicamente: “você está falando difícil”. Ao que Joãozinho da Gomeia prontamente respondeu: “você está pensando que babalorixá tem que ser analfabeto?” E com essa mesma agilidade respondia às velhas ialorixás da Bahia que questionavam sua conduta, muitas vezes classificada como desrespeitosa.

Ainda, nas décadas de 1950 e 1960, o Terreiro da Goméia passou a ser referência, não só por ser um dos primeiros terreiros de Candomblé na região sudeste, mas também pelos seus frequentadores, políticos e artistas de todos os lugares. Entre eles, Cauby Peixoto, Dorival Caymmi, Emilinha Borba, Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, Maria Antonieta Pons, Marlene, Paulo Gracindo, Solano Trindade, Tenório Cavalcanti que teve sua famosa capa preta cruzada no Terreiro e José Bispo dos Santos ou Pai Bobó.

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O pai de santo fez história no candomblé ao colocar a religião em páginas de jornal e revistas. É impossível falar em candomblé do Brasil sem falar do Joãozinho, ele foi essencial para mostrar o candomblé não só como algo exótico, como um culto primitivo, mas sim como uma religião que tinha uma estrutura própria. Negro, de personalidade irreverente à sua época e à sua envergadura como líder espiritual, Joãozinho foi homossexual assumido, compositor, dançarino, assistente social, parteiro, costureiro e bom garantidor de polêmicas ao apresentar as danças sagradas dos orixás em espaços públicos. Além do racismo e dos preconceitos vividos por suas escolhas de vida, sofreu críticas dos seus irmãos de religião que não admitiam um pai-de-santo se dedicar a um caboclo – espírito encantado originário das religiões indígenas, sem relação com a África -, no caso, o Caboclo Pedra Preta.

Os assentamentos de Joãozinho da Goméia foram transferidos para uma nova Goméia, em Franco da Rocha, São Paulo, onde os ibás de seu Oxossi e de sua Iansã estão sendo devidamente cuidados e “alimentados”, e podem ser visitados pelos adeptos que fazem parte da família de santo.

Um dos marcos para o reconhecimento das religiões de matriz africana no país, o Terreiro de Joãozinho da Goméia foi um espaço com trajetória singular, tendo funcionado de 1951 até 1971, quando seu dirigente, considerado o Rei do Candomblé, faleceu
Abraço ao terreiro da Goméia pediu a construção do Centro Cultural, limpeza, cercamento e conservação do local

Em junho de 2020, se não fosse a liderança de mãe Seci Caxi, o terreno onde funcionou a Goméia, poderia deixar de existir, após o prefeito Washington Reis (MDB) anunciar que iria construir uma creche no local. Movimentos sociais, religiosos, culturais e herdeiros de Tata Londirá, mobilizaram um abraço em defesa do terreiro. A ação chegou ao Ministério Público Federal, Defensoria Pública e imprensa que fizeram o prefeito receber a Comissão Goméia e anunciar após muita pressão que havia desistido da ideia de construir a creche “Pequeno Guerreiro” no local.

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Antiga igreja no centro de Duque de Caxias, transforma-se em Galpão de produção de cultura e artes. Foto/Divulgação

Neste cinquentenário do encantamento de pai Joãozinho da Gomeia, seu legado segue vivo nos escritos de Carlos Nobre, Raul Lody, Vagner Gonçalves da Silva e Adriana Batalha; na resistência do Goméia Galpão Criativo, que transformou uma antiga igreja em ponto de cultura; na interpretação de Átila Bee nos palcos, no audiovisual de Rodrigo Dutra; no carnaval de Gabriel Haddad, Leonardo Bora e da Grande Rio; e na resistência dos filhos, netos e bisnetos da Goméia, conduzidos por Mam´etu Seci Caxi.

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Representantes da comissão: Mãe Seci Caxi, Rafael Lêmba Dyala (de branco) e Tata Henrique Dialeluanji no terreiro, em Caxias Foto: Roberto Moreyra / Agência O Globo

A Associação dos Descendentes da Ndanji Goméia (ADENGO) iniciou uma série de vídeos intitulada “50 anos do Rei. O Rei não morreu”, contendo depoimentos de personalidades do candomblé, pesquisadores, professores e historiadores sobre a figura de Tatá Londirá. Outro movimento liderado pela Associação acompanha o processo de tombamento no Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (INEPAC) do terreno onde funcionou o Terreiro da Goméia. Após o tombamento, a ADENGO quer transformar o espaço em um centro cultural de pesquisa de matriz bantu e de preservação da memória do babalorixá. Os descendentes da Goméia reivindicam a preservação do patrimônio histórico e religioso do terreiro, que está embaixo de 1,5 metros de terra, local considerado sagrado para o candomblé. 

Acompanhe a campanha #TombaGomeia na página da ADENGO no facebook: https://web.facebook.com/adengomatriz

Fontes:

CASTELANO GAMA, Elizabeth, UM REI NEGRO NA BAIXADA FLUMINENSE: MEMÓRIA E ESQUECIMENTO. Universidade Federal Fluminense;

Fundação Palmares. Disponível em: <http://www.palmares.gov.br/?p=31927>

PINHEIRO, Ana Carolina, Joãozinho da Gomeia, o rei do Candomblé. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/diversidade/joaozinho-da-gomeia-o-rei-do-candomble/>

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Cidadão Baixada. Filho, neto e bisneto de pernambucanos é caxiense, portelense, tricolor, professor de História e Jornalista. É pesquisador na área da pessoa com deficiência, voluntário do Lions Clube Xérem e no Pré-Vestibular Comunitário da Educafro.

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