Encantado é o nome do novo espetáculo da companhia Lia Rodrigues, no Centro de Artes da Maré. Ele acontece num galpão industrial, a meia quadra da avenida Brasil, na entrada da favela. O público é acomodado numa arquibancada simples ou em almofadas no chão. Não há refletores, nem coxias, apenas um tablado simples. Ele está vazio, apenas se destacando lá no fundo um rolo colorido, como um tapete enrolado, que se estende de ponta a ponta.
Quando começa o espetáculo, os bailarinos, agora nus, vão lentamente desenrolando o tapete e o público percebe que ele é feito pela justaposição de dezenas de cobertas multicoloridas. Logo vem à memória o Aids Quilt, o memorial de milhares de panos, com nomes bordados, peças de roupas e elementos que lembravam as vítimas da Aids nos Estados Unidos.
Agora, todo o chão do palco está coberto pelo imenso tapete de cobertas. Elas são daquelas de tecido sintético, exuberantes, que não entram em casas de decoração minimalista. Há padronagens de oncinha, de zebra, de florões, e de inusitados desenhos em que os tons de vermelho prevalecem sobre cinzas e verdes. Os bailarinos começam a manipular os panos, passando a se cobrir com eles, criando vestes, turbantes, mantos e mangas bufantes.
A cena, que até então se desenrolava em silêncio, agora é acompanhada por uma música indígena, forte, repetitiva, com sons de instrumentos de corda, tambores e vozes. É a música do povo Guarani Mbya que os acompanhou no protesto dos povos indígenas em Brasília, em 2021, contra o projeto do marco temporal. A música envolve os bailarinos numa atmosfera de urgência, lamento e estranha euforia.
O grupo é bem diverso, tanto racialmente, como em relação aos corpos e às cabeleiras, onde alguns dreads se destacam. Como nuvens se movendo no céu, eles vão alternando diferentes formações. Às vezes solos, outras em grupo, silenciosamente, ou eventualmente recorrendo a palavras e cantos, criam imagens que surgem e desaparecem continuamente. Expressam suas individualidades, ou colocam seus corpos a serviço da formação de figuras abstratas, do cotidiano dos bailarinos, ou contestadoras. Os meios espartanos lembram as propostas de Grotowski por um teatro pobre.
A companhia Lia Rodrigues nasceu na década de 1990 ocupando pequenos teatros e espaços da Zona Sul, sempre buscando uma linguagem inovadora a partir de pesquisas sobre as possibilidades e limites do corpo. Mas, na década seguinte, realizou um movimento fundamental para a consolidação da sua imagem e linguagem ao associar-se a grupos de ativistas da Maré.
A companhia se instalou no Centro de Artes da Maré, ajudou a recuperar o antigo galpão industrial e passou a absorver a estética e as temáticas locais, além de participar das lutas dos moradores da Maré. Lá a companhia se transformou, substituindo pouco a pouco a maioria de bailarinos de fora por artistas locais, ou de outras comunidades, formados pelos cursos desenvolvidos como parte desse projeto.
Esse movimento de Lia Rodrigues, aliado à inventividade e iniciativas dos ativistas locais, vem contribuindo para ressignificar aquele pedaço da favela. Ir à Maré assistir a Lia se tornou um programa imperdível. O público da Zona Sul vai em vans e se integra aos moradores locais, que sempre prestigiam a companhia. Coincidentemente, o entorno do Centro de Artes vem ganhando novos edifícios e lojas. É a arte contribuindo para melhorar a cidade.
Eu assisti Encantado duas vezes, ha 52 anos vejo todos os espetáulos de dança que tenho oportunidade e tenho minha opinião:
Episódio 2 – Depois de Fúria, eis que desembarca O Encantado no Centro de Artes do Complexo da Maré, visto pelo meu olhar da estreia em 7 de outubro de 2022.
Autora: Cida Patroclo
No espetáculo Fúria está presente a diversidade de raça, de gênero, etnia e sociopolítica, expressa nos corpos dos bailarinos, nos movimentos raízes, nas figuras de seres mágicos, no nomear das nações africanas, tudo irmanado pelos horrores do Brasil do #ELENÃO.
O espetáculo Encantado de concepção ainda da coreógrafa Lia Rodrigues com a ajuda da sua valente ensaiadora, antes de ser visto por mim, por dele ouvir falar por uma de suas bailarinas temporárias, já o tinha como o episódio 2 de uma mesma temática, ou seja, este mundo, vasto mundo, de onde viemos, onde estamos e para onde vamos agora urdida pela narrativa de uma enorme colcha de tapetes multicoloridos.
O que meu olhar viu não é o que me contaram e o que vou te contar talvez não seja o que o teu olhar há de ver, vá conferir com os teus olhos que a terra há de comer.
De repente uma enorme nostalgia me invade com o desenrolar lento de uma enorme colcha de retalhos, tapetes, cobertas (???) multicolorida e meus olhos se enchem d’água, mesmo o som alto na favela me perturbando, como se diante dos meus olhos estivessem se desenrolando inúmeras civilizações, milhões de vidas inclusive a minha própria.
Um a um, dez bailarinos se desnudam e corpos fantasticamente realistas adentram os tecidos e se transmutam e o realismo fantástico faz sua mágica e não dá mais para impedir que a perplexidade se instale ao presenciar um show indescritível de criatividade proporcionada por música, corpos, tecidos e expressões faciais e corporais impossíveis de traduzir.
Vejo o espetáculo como o despertar pós uma hecatombe onde se busca freneticamente uma ordem na desordem, onde solos, duos, trios e o coletivo tentam se conectar com o presente por meio de bailarinos totalmente incorporados por divindades supremas.
Uma alegria louca, uma louca alegria faz com que o espetáculo adquira uma beleza impressionante e meu corpo não mais me obedeça, minhas pernas e meus ombros se movam e meu rosto brilhe num sorriso de puro prazer por estar ali. Eis que eu novamente adentro ao espetáculo.
Em Fúria quase sucumbimos a barbárie, mas chega Encantado para ressignificar o renascimento presente em barrigas prenhas de todos os sexos e gêneros; no embalo dos recém-nascidos, frutos da arte de se fazer com tecidos, Encantado é celebração da vida!!!
O que esperar do episódio 3? Qual o próximo nível que a concepção criativa pós madura pode alcançar?? O que a construção intergeracional será capaz de suplantar???
Apesar do real concreto, o realismo fantástico há sempre, onde esteja: literatura, música, dança … nos permitir sobreviver pela transmutação do livre sonhar.
Queiram as divindades supremas que possamos celebrar um admirável Brasil novo a partir 1 de novembro de 2022, como os bailarinos sinalizaram nos agradecimentos.
Em síntese a Companhia Lia Rodrigues está intimada a nunca mais me privar de suas produções e eu espero ansiosamente que para as próximas gerações já comecem a ser preparadas(os), pois demanda um tempo incomensurável, herdeiras(os) deste legado generosamente criativo e politicamente contextualizado.
VIVA A ARTE GENUINAMENTE LATINO-AMERICANA, VIVA A ARTE COM POTENCIAL UNIVERSAL, VIVA A ARTE QUE NOS COMPLETA A VIDA!!!!